19 fevereiro 2012

Sovas e outros ajustes de contas

Èramos uns gaiatos e já nos dávamos como agora, sempre às turras e às massas, mas dávamos a coisa por resolvida sempre com um aperto de mão e uma snifadela de resignação.
Ainda te lembras de quando andaram a dizer que eu andava a arrastar a asa à tua irmã Helena?
Deste-me a maior sova da minha vida e ainda hoje se me estala a cana do nariz se me assôo com mais força.
Foste sacana, é certo. Apareceste-me por trás e deste-me um soco que até se me fez estremecer os ossos.
Fiquei estendido no chão em três tempos, aturdido e sem perceber nada daquilo. Ainda te arreei umas murraças bem dadas mas tu, que sempre foste mais maciço e forte que eu, não me deste abébias nem descanso.

"Com a minha irmã é que não, cabrão!"

e eu fiquei ainda mais confuso. A tua irmã sempre foi gira que se fartava mas nunca me ligou pevas e, da minha parte, como sabias, andava aos caídos pelos montes por causa da Luísa.
Não foi uma sova merecida, mas para mim, e depois da poeira ter assentado e o nariz ter deixado de sangrar, aumentaste um sem número de pontos na minha consideração. Um homem que defenda daquela forma uma mulher, seja irmã, amiga ou amante, só pode ter os tomates bem postos no sítio, já para não falar de um coração de cavalo.
Acabaste por dar o dito por não dito porque a Luísa, que ficou tão fascinada com a tua demonstração de valentia, não descansou enquanto não se enrolou nos teus braços, enrolanço que, diga-se de passagem, dura até hoje.
Deu-me gozo quando a Helena se veio sentar ao pé de mim, no calhau que usávamos como poste de baliza no descampado junto à Sé, e me disse que tu eras um filho da mãe, por me teres rebentado o nariz e por me teres roubado a namorada. Pespegou-me com um beijo na bochecha que me valeu três meses de romance afogueado com ela e claro, os mesmos três meses sem te ver os dentes.
Menos mal que não retaliaste. Se o tivesses feito eu mandava a tua irmã passear, ainda hoje acredito que por mulher nenhuma vale a pena perder um grande amigo.
Por isso é que te perdoei quando me enviaste o convite para o teu casamento com a Luísa e, babadíssimo de satisfação, fui teu padrinho.
A coisa com a tua irmã passou rápido, estou convencido de que foi, para ambas as partes, mais um ajuste de contas e emancipação, do que qualquer outra coisa que se assemelhe levemente a amor.
Olha, Carlos, fazes-me falta. Vê se voltas rápido ao mundo dos vivos, senão já sabes que tenho que ir eu a esse lado.
E garanto-te, meu cabrão, que isso te ia valer uma sova valente (não imaginas o maciço e forte que me pus no último ano e meio!).

17 fevereiro 2012

A casa ao fundo

A casa ao fundo. Sozinha na colina feita de arvoredo, animais escondidos e brincadeiras antigas.
Num esforço estoico tentou lembrar-se da ultima vez que tinha ali estado, organizou mentalmente alguns episódios possiveis, mas não foi capaz de os catalogar cronologicamente. Fora já há muito tempo. Demasiado.
[e o tempo pesa nas memórias.]
Afagou a mesa da cozinha. Madeira gasta, pequenas protuberâncias de cortes cheios de anos dentro. Inalou profundamente. O odor permanecia intocável, mais vazio talvez.
[as pessoas quando morrem levam as memórias das coisas que tocaram para longe.]
Percorreu lentamente as divisões da casa. Silêncio. Só um passo atrás do outro. Toc-Toc-Toc.
O barulho de pratos no lava-loiça, a água a correr.

"Mãe!"

E correu ao encontro do que sabia ser nada. Do que sabia ser o invisivel corpo da mãe encostado à banca, de avental às riscas e toutiço na nuca.

"Chega-me esse pano. Não, esse não, esse é o das mãos. O outro, dos quadrados."
"Sim, mãe."

Levou a mão ao gancho preso nos azulejos brancos imaculados. Pegou com cuidado no pano imaginário. O dos quadrados. Sentiu-lhe o tecido fino, cada fio. Por fim passou-o à mãe.

"Obrigada, Julia."

E curvou-se ligeiramente para receber o beijo que não estava lá, num exercicio perfeito de mimica.
O som do jipe a estacionar no quintal, a voz do pai ao longe.

"Julia, vem ajudar-me a descarregar a lenha."

E ela distraída com qualquer coisa. Não se recordava ao certo do quê: uma borboleta, o riso do apresentador da televisão, a cadência perfeita e mecânica com que a mãe pegava num prato e o enchia de espuma perfumada, depois o passava por água e o punha a escorrer?

"Julia, não ouves o teu pai a chamar? Anda, vai lá. Despacha-te!"
"Sim, mãe."

Como que a acordar de um sonho.
Chegou ao átrio e apressou-se a pegar num cepo grande e pesado que o pai segurava.
O toque. O toque do pai. O toque da mão do pai, segura, forte, áspera. Toque electrico, ainda tão longe de morto.

"Segura bem Julia. Não deixes cair."
"Sim, pai."

E regressou a casa pela porta principal. Pesada da sensação que era ter um cepo daquelas dimensões nos braços. Grávida de cheiros, sensações e lembranças.
Pousou-o com cuidado junto à lareira já acesa.
[havia sempre uma lareira acesa n' A casa ao fundo]
Aproximou as mãos do lume inexistente e esfregou-as, a segurar o coração entre elas, a não deixá-lo cair. A massajá-lo para que não parasse de bater.
De novo o silêncio. De novo o vazio. De novo os passos Toc-Toc-Toc. De novo já não existir pano pendurado no gancho preso nos imaculados azulejos brancos da cozinha. De novo o lume extinguido e o cesto da lenha cheio de ar e restos de cinza.
Sentou-se á mesa e percorreu vagarosamente cada corte. Afundou-se mais na cadeira, chorou durante algum tempo sobre a percepção de que depois de tantos anos, depois de perdido o que foi perdido, depois dos sorrisos, dos abraços e da morte, ela era a única, a seguinte, a última. Que da próxima vez que lhe batessem àquela porta seria para a embrulhar num pano aos quadrados e a levarem para onde exista uma lareira sempre acesa e esteja sempre quente.
Preparou café e fumou um cigarro.
[Truz-Truz-Truz]
Primeiro confundiu o ruido com os seus passos, depois compreendeu que batiam à porta furiosamente. Olhou de soslaio a maçaneta, ficou a escutar os murros constantes que desferiam na madeira velha da porta. Considerou não a abrir, deixar-se ficar, fingir que já a tinham levado. Enganá-la.

"Julia, não ouves a porta? Vai lá ver se é gente viva ou morta"
"Sim, mãe..."

Rodou a maçaneta e suspirou.

Presságio

Quando tiveres mais anos a pesarem-te nos ombros, e tê-los-ás, quando o teu corpo crescer tanto que já não caiba dentro dos meus braços, e crescerá, quando já não reconhecer a tua voz de menino, sempre à espreita, sempre meigo, sempre atento, vais fingir que não sabes nada disto.
Ao inicio vai parecer-te que não sabes mesmo, que eu sou uma espécie de acaso na tua vida, que eu sou aquela que está sempre lá, que te irrita como mais ninguém o faz, que se zanga com coisas que te parecerão sem grande sentido, mas que no entanto, e não vais compreender porquê, tem sempre guardado um sorriso na palma da mão e mil abraços na algibeira.
Nesta altura eu vou ser um dado adquirido, ainda que não saibas como vais saber que, faças o que fizeres, eu vou estar sempre à distância de um dedo, e que podes testar-me quase todos os limites.
Vais cometer o erro de me julgares apenas tua. Vais pensar ter todos os direitos sobre a minha pessoa e que antes de tudo o resto estarás tu. Isso será quase verdade, mas farei com que julgues não o ser e isso vai fazer-te infeliz.
Sim, existe uma probabilidade perigosamente grande de que eu seja o motivo pelo qual o teu coração se vai rachar pela primeira vez.
Vai haver um momento, vários até, em que vais questionar o meu amor por ti. Vais encher-te daquilo que te contam e lês nos livros, e vais reclamar vezes e vezes sem conta que te ofereça a minha vida numa bandeja. Não o farei. Peço-te que quando a altura chegar me saibas perdoar por isso e por tantas outras coisas. Para umas precisarei do teu perdão porque errei efectivamente, noutras será o fardo da tua infelicidade e sofrimentos que serão pesados demais, ainda que inevitaveis.
Mais tarde existiram momentos em que vou sentir-me perdida, em que vou ser eu a mais pequenina, em que vou precisar de beijos, abraços e palavras bonitas, mas tu vais julgar que é capricho meu, ou sentimento de posse, ou necessidade de te conter só mais um pouco perto de mim. Terás razão em todos estes pontos.
Vais querer fechar-te no quarto, esconder-me coisas. Provavelmente começará pelo teu corpo, e eu vou fingir que não compreendo, compreendendo.
Tenho a certeza absoluta que em dado momento vou reconhecer nos teus olhos emoções e sentimentos que não vou saber descodificar. Mesmo sem querer intrometer-me vou questionar-te, procurar respostas. Tu não mas vais dar, dando.
Vais pegar na minha mão menos vezes mas vais saber que ela permanece intocável no sitio onde sabes poder sempre regressar. Vais sentir-te indestrutivel, como se nada do que faças poderá trazer-te consequências de maior. Vais enganar-te.
Tudo aquilo que fizeres retornará para te assombrar. O primeiro desgosto de amor (provocado por ti ou em ti), a distração nas aulas, as richas em que te possas envolver na escola, o comentário menos feliz dirigido a algum professor. Acima de tudo serão as lágrimas as que mais te vão impressionar, as tuas e as dos outros. Ao longo da tua vida vais relembrar algumas pelos mais diversos motivos, e isso vai fazer-te sofrer novamente.
Garanto-te que, haja o que houver, eu estou aqui, no entanto dou-te a mesma garantia de que hão-de existir alturas em que não me vais querer lá, e outras em que eu própria me vou obrigar a sair de cena para que possas aprender a lamber as tuas próprias feridas. Vais julgar que já não me conheces e considerar o meu afastamento uma traição.
Vais fingir que não sabes nada disto, que não leste estas palavras. É possivel que faças tudo ao contrário só para contrariar, mas eu vou saber, e tu vais saber, que a linha invisivel que nos une não se quebra. Pode ser que venhas a detestar o meu amor incondicional (como eu), mas ele vai estar lá, impenetrável.
Eu vou sabê-lo e tu também. E este será o nosso maior e eterno segredo.

01 fevereiro 2012

Não sei porque escrevo

Eu não sei porque escrevo. Aliás, sei que escrevo porque de algum modo as palavras dentro de mim não se contêm e transbordam sem dar fé e porque, semelhante a uma embriaguez profunda, me sinto aliviada depois de vomitar pensamentos para o papel. Disto eu sei.
Mas não sei porque escrevo.
Fumo muito enquanto me debruço sobre cadernos e os rabisco sem qualquer pudor. Não os poupo a letras feias e mal desenhadas, a cinza que vai caindo aqui e ali, nem a dedadas que se vão imprimindo nas folhas tornando algumas palavras pouco legíveis quando a tinta não está ainda seca.
Gosto de guardar blocos quase completamente escritos, gosto de os deixar com algumas folhas em branco no fim. É dificil colocar pontos finais, terminar coisas, dar-lhes um fim.
A possibilidade de um dia lá voltar gosto de a manter em suspenso. Raramente lá volto, é certo, mas tranquiliza-me saber que podendo, posso sempre lá regressar e brincar com o tempo como se fossem peças de Lego.
Escrever nas ultimas folhas do caderno que deixei incompleto aos quinze anos pode ser tão divertido como doloroso. Divertido quando me esqueço dos anos e me julgo ali outra vez, com quinze anos, a querer e a sentir tudo como se as horas não se tivessem precipitado em mim. Doloroso quando o discurso prometia e preconizava melhorias, quando já muito havia sido dito, mas muito mais havia por dizer... as possibilidades a serem infinitas, com quinze anos.
Brincar com o passado é uma ginástica de contorsões, de ilusões. Brincar com o passado é quase brincar ao Carnaval.
Mas não sei porque escrevo.
Posso conjecturar acerca de me sentir mais viva, de me ser fisica e emocionalmente impossivel não o fazer, posso dizer que as minhas veias ardem, que o meu coração se debate, que...
Mas ainda assim, não sei porque escrevo.
Como não sei, ou pelo menos não tenho a certeza da razão porque falo contigo, folha, digo-te que o mais provável é que escreva para morrer devagar.
E perdoa-me por te confidenciar, a ti, directo interveniente, que não tenho a certeza acerca de um sem número de coisas, mas que sei, quase sem margem para dúvidas, que seria muito, tão mais feliz, sem esta urgência em te falar. Sem este vómito constante. Sem este não saber porquê.
E eu não gosto de não saber porque faço as coisas. 

A estranha

Eu queria, antes de mais, que soubesses quem eu sou.
Que durante a noite me sonhasses e acordasses estremunhado com o meu rosto pendurado nos teus olhos, desconfiado da minha existência. Que depois, no duche, fechasses os olhos e sentisses a água quente no teu corpo, e te surpreendesses com o meu toque na tua pele.
(Depois podias esquecer-me or alguns minutos.)
No trânsito, enquanto te enfadas com as buzinas, com os semáforos, com a musica inaudível que alguém insiste em propagar de vidros escancarados, com os palavrões dos outros condutores zangados mais com eles próprios do que com a vida, queria que me soubesses outra vez dentro dos teus olhos. Que te deixasses possuir por aquilo que julgas que sou e me deixasses tocar no volante. Que as tuas mãos descansassem no manípulo das mudanças enquanto eu, a estranha, te conduzia silenciosa.
No estacionamento escuro e mal cheiroso me julgasses ver num rosto qualquer.
Que julgasses estar a enlouquecer. Que me deixasses levar-te à insanidade daquilo que desconheces.
À noite, já em casa, queria que me sentisses a falta enquanto cozinhas sozinho, enquanto pões a mesa com lugar só para um, enquanto vês as noticias e reprimes um comentário por te julgares ainda mais louco se falasses alto sozinho. Comigo, a estranha.
Gostava que me imaginasses os contornos, que me julgasses com sardas e nariz arrebitado, que me visses sempre vestida às bolinhas, com um carrapito no alto da nuca.
Queria que, mais dia menos dia, te sentisses ansioso, que o teu coração te batesse no peito como um martelo quando as ruas, as pessoas, os cigarros e a loucura quotidiana te falassem de mim. Quando me tentasses adivinhar o nome e a morada.
Gostava que quando começasses a temer estares realmente insane te fosses sentar num banco de jardim e falasses com as árvores, com a relva, com os esquilos e com as minhocas sorrateiras debaixo da terra, que lhes perguntasses por mim.  Que colocasses cartazes na rua com o desenho do rosto que imaginaste para mim e me chamasses "a estranha". Gostava que não tivesses vergonha nem pudor de fazer o acima requerido porque certamente eu existo, e existo exactamente como me sonhaste da primeira vez.
Ficar-te-ia grata se passados uns meses já me colocasses um prato na tua mesa, que cozinhasses para dois, que partilhasses em voz alta comentários sarcásticos acerca do estado do mundo. Gostava que me aceitasses como uma parte de ti e te sentisses menos sozinho.
Queria que te despedisses, que mandasses o teu patrão dar uma volta ao bilhar grande e que regressasses a casa somente para a esvaziar. Que levasses só os nossos pratos, talheres, copos e guardanapos. Que comprasses uma caravana e te atrevesses finalmente a pintar o mundo.
Gostava que me deixasses entrar em ti devagar para escolher as tonalidades daquela que viria a ser a minha tela: eu sentada num banco de madeira a soprar bolas de sabão.
No final do dia, enquanto lavas os pincéis e os colocas em aguarrás, gostava que te sentisses impelido a olhar em frente, e me encontrasses ali, sentada num banco de madeira a soprar bolas de sabão.
Gostava que te deixasses finalmente sossegar. Eu afinal sempre existia, e existia exactamente como me sonhaste da primeira vez: sardas e nariz arrebitado, vestida às bolinhas e com um carrapito no alto da nuca.
E se não te importares, peço-te só mais isto. Que não te surpreendas demasiado quando me aproximar de ti e te perguntar:
"Desculpe, conhece este homem?",
e te mostre um cartaz gasto, amarelado e meio rasgado com o teu rosto e os pincéis ao fundo, e descansar em aguarrás.