25 março 2012

Acordei nua ao lado de uma mulher

Eu não sabia que era este o sabor de uma mulher. Que era este o toque.
Também nunca tinha pensado nisso, o meu corpo no corpo de um homem fazia sentido e satisfazia-me. Sexualmente sempre julguei que um homem poderia fazer tudo o que uma mulher faz, e mais.
Esta noite aconteceu sem eu saber bem como, nem porquê. Para ser honesta nem sei bem onde começou. Gosto de pensar que foi na electricidade do beijo em frente ao espelho da casa de banho, mas tenho quase a certeza que foi antes, muito antes. Tenho quase a certeza que foi ainda mais simples, que foi o olhar.
Eu não sabia que o olhar de uma mulher me podia ler melhor que o de um homem, que era capaz de compreender, muito antes de mim, aquilo que eu quero.
Afinal de contas só agora estou a pensar nisto mais a sério, deitada ao lado de uma mulher nua que dorme no meu colo.
Não fui capaz de pregar olho. Depois do sexo fumámos cigarros, vimos filmes e comemos pão com pão. Ela já dormia aos vinte minutos do segundo filme, enroscada no meu corpo quente, preocupado. Serena.
Nesse momento, tal como agora, surpreendeu-me a calma e a naturalidade, o sorriso discreto debaixo dos olhos fechados, a mão distraidamente pousada no meu peito, como se fosse o unico sitio certo e a fazer ainda o mundo girar.
Não sei se estar acordada faz de mim o homem, não sei sequer se nestas coisas há o homem e a mulher, separados.
Quando a questionei no meio da musica que berrava aos nossos ouvidos, ela disse-me que para ela não existiam homens ou mulheres, mas sim pessoas, e isto para mim fez sentido, foi o suficiente para, por entre mais um copo de Beirão, eu acreditar que me podia efectivamente apaixonar por ela.
Agora não sei. Acho-a linda, sim, é uma mulher indiscutivelmente bonita, conheço-a de várias andanças, as mesmas sempre que as minhas e, tal como eu, comove-se com as coisas simples. Se fosse um homem o assunto estava resolvido e o sexo já teria acontecido há muito tempo.
O corpo dela moveu-se e ela gemeu. Agora, agora mesmo, em cima de mim. É dificil não lhe adorar os olhos rasgados fechados, a boca entreaberta e os cabelos no rosto.
E seu eu me apaixono por ela?
Se eu me apaixono por ela o mundo gira no mesmo sentido, os barcos não atracam para nos ver chegar, a policia não se coloca no nosso encalço para nos prender, o Sol vai continuar a ser o Sol e eu vou continuar a ser eu, mas mais completa, mais humana, mais "evoluida", porque finalmente compreendi que é a humanidade que nos diferencia, e que dentro da pele somos todos iguais e que se eu me apaixono não é só por um corpo, é pelo que ele tem dentro.
Beijei-a com a certeza de que aquilo fazia sentido e de que corria o risco de me apaixonar por ela e de um dia dar por mim com a mão distraidamente pousada no peito dela, como se fosse o sitio certo para se esquecer o toque.

22 março 2012

Importancia relativa

Não vou dizer quem ela é, não é importante. A única coisa importante é o que ela é dentro da pele.  Era amiga da minha bisavó, muito amiga. Da bisavó que me deu o nome que carrego com orgulho, não pelas letras mas pelo legado que me foi deixado pendurado em cada sílaba.
Porque Beatrizes há muitas, imensas, então da geração que tem agora entre quatro a sete anos são um horror delas.
Para cada um que opta por dar este nome a uma filha, os motivos podem ser mais que muios. Para muitas familias será um nome nobre, eloquente, quase lirico, para outras a dado momento ficaram presas entre Leonor, Matilde e Beatriz, e podem ter optado pelo último porque na escola será a primeira a ser chamada, se as carteiras forem dispostas por ordem alfabética ocuparão os lugares mais à frente, mais perto da voz e do olhar atento da professora.
Na minha familia foi a minha bisavó. Alentejana analfabeta, não sabia ler nem escrever, coisa que a mim me fazia uma confusão dos diabos, habituada desde sempre a saber que os "crescidos" sabiam mais do que eu, tanto mais do que eu. Para mim, na minha inocência e pequenez, se ela não sabia descodificar simples letras numa folha de papel, não me podia ajudar nos trabalhos de casa, não me podia ler livros em voz alta, que poderia saber?
Tanto, tanto mais que a maioria dos "crescidos". A vida foi-lhe um fardo dificil, mas sempre que me recordo dela lá estão os olhos muito azuis a chispar de brilho atrás dos óculos redondos parecidos com os do John Lenon, o cabelo tão branco a emoldurar-lhe o rosto de neve, o sorriso gentil e bondoso.
Portanto, a história do meu nome é muito mais que a história de um nome, é a história de uma pessoa que merece ser recordada, contada, e recontada muitas vezes.
Não foi rainha, não pertencia a uma classe social elevada, não tinha muito ouro, não empunhou pás para arrear em soldados rezingões nem criou nenhuma teoria acerca da origem do Homem e do Universo. Mas na minha familia, e até depois de morta, continua a ser uma mulher de punho em cima do tampo da mesa, a fotografia numa cómoda que não tem um grão de pó.
Se este legado não servir a mais ninguém, serve para me lembrar a mim que sou feita de pó, de matéria mortal, que devo ser forte mas nunca maldosa, que devo ser gentil, mas nunca escrava de ninguém, que devo segurar na palma da mão aqueles que amo, sem nunca os apertar em demasia, que devo respeitá-los, ainda que á distância.
Comecei a pensar escrever sobre a amiga da minha bisavó, que não é importante que se saiba quem é, mas o que é. Talvez para a próxima, ou talvez nunca, mas que fique registado que ela era amiga da minha bisavó, muito amiga. E isso tem que contar para alguma coisa, não é?

Até que a morte nos separe

Eduardo, tenho uma coisa para te dizer. Eu gosto de ti.
Há alturas em que nem quero saber que tenhas mulher e filhos e sinto-me suja. Sinto-me suja quando saio daquele cubiculo onde nos encontramos às escondidas. Sinto-me suja naqueles lençóis, sinto-me suja por sentir tanto prazer quando me tocas, sinto-me suja quando olhas tão fundo nos meus olhos, sinto-me suja quando respiras junto ao meu ouvido.
Mas não é isto que tenho para te dizer, isto já tu sabes. Já to disse, silaba por silaba, entre lágrimas e soluços.
Tu devias ter casado comigo. Era a mim que devias ter prometido amar e respeitar, na riqueza e na pobreza, na saude e na doença até que a morte nos separasse. Devias ter-mo dito e prometido a mim porque seria uma mentira, porque claro que não nos íamos amar e respeitar até que a morte nos separasse, não seria precisa a morte porque tu te irias, eventualmente, fartar dos meus cabelos desgrenhados pela manhã, e eu me iria fartar das tuas meias enroladas ao fundo do colchão.
É por isto que comigo é que te devias ter casado. Que comigo é que devias discutir por coisas sem importância nenhuma, que se discutem porque tem que ser, porque estaríamos tão cansados já, tão fartos já, tão desapaixonados já, que a única coisa que teriamos para dizer um ao outro eram essas palavras ridiculas em discussões idiotas por coisas sem importância nenhuma.
Assim, desta forma, como somos e existimos, estou condenada a ficar contigo até que a morte nos separe.
Tenho de ti o teu melhor. Os teus sorrisos, as tuas ternuras, o sexo, a urgência em me tocares, as tuas mãos nas minhas, o teu corpo no meu, inteiro. Não vejo os teus olhos com raiva por te ter destruido os sonhos de viagens em volta do mundo, a casa na floresta onde querias ter vivido, os concertos a que querias ir e não podes porque os filhos são pequenos e a vida não deixa.
Eduardo, há alturas em que te odeio por não me poder zangar contigo até que os meus olhos me saiam das órbitas, por não te poder trair sequer, por não ter a fuga do divórcio e da cura que vem da raiva por não querer nunca mais olhar para a tua cara.
O que eu te quero dizer, o que tenho para te dizer, e que mesmo que eu não queira, não tenho outra opção senão amar-te e respeitar-te, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, todos os dias da minha vida, até que a morte nos separe.

Somos felizes, não somos?

Camila, somos felizes. Acredito de forma piedosa que somos felizes. Digo felizes a maior parte do tempo, claro, que os nossos olhos também se entristecem e de quando em quando caem-nos grossas gotas de água dos olhos fora, nos encharcam as bochechas e nos deixam uns minutos com pingo no nariz.
Mas, regra geral, olhando para a imagem grande, julgo sermos felizes.
Mas não julgo só e apenas que sejamos felizes como se estivesse a dizer que um gato é feliz por se empoleirar no telhado, digo, afirmo e creio que somos felizes um com o outro. Que eu para ti, e tu para mim, somos peças essenciais à nossa mutua sobrevivência. Separados morreríamos de fome, com alguma doença, com o coração rachado ou coisas menores, como por nos cortarmos num dedo a fazer o jantar.
Sim, de certeza que, se estivermos separados, um simples golpe num dedo nos mata.
Camila, eu amo-te. Quero dizer, eu não sei bem se te amo, se te venero, se te desejo ou se sou só louco e viciado em ti. Na tua pessoa, naquilo que tens vestido por baixo da pele, naquilo que é o teu sorriso, que não é só o teu sorriso, que é o conjunto de uma série de movimentos perfeitamente sincronizados com a tua voz, as tuas emoções, as imagens que tens dentro e atrás dos olhos.
Os teus olhos, Camila, os teus olhos!
Eu não sei se posso falar dos teus olhos como se fosses humana. Para falar dos teus olhos teria que fazer uma qualquer referência a um ser étereo que não existe, que não é fada, que não é anjo, que não é sereia, que é qualquer coisa de tão transcendentalmente belo que não poderia ser por mim descrito, comum humano de olhos castanhos barba por fazer e pernas de jogador da bola.
Somos felizes, somos felizes, somos felizes.
Repito, insisto, até já o gritei. Tu não apareceste, não me respondeste, não me sorriste, nem para mim olhaste.
Não sei o que foste fazer para te demorares tanto tempo. Não levaste nem a tua carteira com os teus documentos, nem os sapatos vermelhos (que usas sempre que vais passear), nem a mim.
Camila, não me levaste contigo. Nem a mim me levaste, e tu já sabes que somos tão felizes que, se estivermos separados, um corte no dedo nos pode matar.
Já não como há três dias, não me mexo deste sofá, não ouso sequer ir à casa de banho. Eu sei lá se não tropeço na alcatifa e me esparramacho no chão e me esfolo no cotovelo e depois? E depois se eu fico práli deitado a esvair-me em sangue e tu sempre sem apareceres. Eu morro Camila, juro que morro, sabes bem que morro.
Somos felizes. Não somos?

18 março 2012

Aeroporra, de José Luis Peixoto

"Zé Luis, não vale a pena continuares a procurar o amor em aeroportos. Toda a gente tem um avião para apanhar. Até tu tens um avião para apanhar. Na extrema coincidência de a pessoa por quem te interessares estar à espera do mesmo avião que tu, o mais certo é que, ao aterrarem, tenham destinos completamente diferentes: tu estás a ir encontrar-te com pessoas que não conheces num lugar que não conheces; ela está, por exemplo, a chegar a casa.
Além disso, o mais habitual e provável será que as malas dela cheguem muito antes do que as tuas e a vejas afastar-se, empurrando o seu carrinho, enquanto tens a intenção de lhe estender o braço, mas não o fazes e apenas constróis essa imagem mentalmente. Não, Zé Luis, não é a luz que as faz parecer mais atraentes. A claridade branca dos aeroportos, o ar-condicionado, nunca beneficiou ninguém. Ès tu, são os teus olhos de fantasma, criatura destacada do mundo. Podes ver, mas não podes tocar. Se lhe disseres alguma coisa para além do "por favor/please", "obrigado/thank you", não serás ouvido. A tua voz, Zé Luis, existe sobretudo dentro de ti, mas isso já sabes, claro. Seria muito dificil que não o soubesses.
E mesmo quando chegas, quando pensas que chegas. Telefonas a alguém que se surpreende. "Estás cá? Pensava que não estavas cá." Não chegas nunca, Zé Luis. Quando fizeres escala num aeroporto - sim, Frankfurt, Zurique, Munique, Londres, Paris, Milão, São Paulo, Nova Iorque - não olhes para a rapariga da caixa que te vende uma senha e que te devolve o troco. Esse é o teu erro. Não interessa a forma dos seus olhos, nem se lhe distingues um sorriso, nem o tom da sua pele, nem o seu pescoço. Não te imagines a deslizar as costas dos dedos no seu pescoço. Não imagines nada. Queres tomar um café? Então, pede um café. Zé Luis, vai lá e pede um café/coffe. Depois, transforma-te em sueco. Não olhes a rapariga da caixa nos olhos. Agradece - "obrigado/thank you" - apenas. Sempre sueco, leva o café na pequena bandeja e senta-te. Não vejas as pessoas que estão à tua volta. Não as descrevas para dentro de ti. Ao fazê-lo, estarás a transportá-las para o teu interior e, sabes bem, esse caos já está sobrepovoado.
Zé Luis, Zé Luis. Procura o terminal de onde parte o teu voo. Segue as setas. Olha apenas para as setas, as letras, os números. Depois, procura o portão de onde parte o teu voo. Não procures amor no ecrã das partidas, procura nomes de cidades e horários. Quando chegares ao lugar de onde vais partir, senta-te e espera. Não olhes em volta, Zé Luis, pode algum olhar cruzar-se com o teu e, depois, já sabes. Inventas tanto. Se andas sempre a carregar esses livros todos, a derrotar as costas, porque não lês um pouco? Vais ver que o tempo passa depressa. Depois, no interior do avião, também passará depressa. Agora, até as viagens de dez horas passam depressa. Tudo se aprende, Zé Luis. Até a ser sensato. Sobretudo quando as circuntâncias te obrigam. Por isso, não procures o amor em aeroportos, procura after-shave no free shop. E se passar uma hospedeira e olhar para trás, directamente para ti, se voltar a olhar e voltar a sorrir, lembra-te que deve trabalhar na Emirates, deve ir para o Dubai e que as probabilidades de revê-la são zero. Mas, ainda mais a sério, ainda mais a sério, se aquela rapariga da cafetaria, a que está sentada na mesa ao lado, com um vestido de alças, se ela se virar para ti e disser "olá/hello", finge que não ouves. Zé Luis, peço-te que continues a brincar com os dedos, que continues com o olhar embaciado numa cor ou em várias cores. Bastará olhares para ela uma vez. As drogas e as mentiras são assim. Se olhares para ela, se responderes - "olá/hello/salut/hola/ciau/bok/hej" -, sabes o que vai acontecer? Ela vai sorrir para ti. E tu, claro, de certeza absoluta, vais sorrir para ela. E vão conversar. E não interessa aquilo que ela diga, não interessa a vida que tenha para te descrever em meia duzia de frases escolhidas. Também tu vais descrever uma parte infima da tua vida na mesma meia duzia de frases. E esses esboços de vidas vão parecer duas peças de lego que encaixam na perfeição. E os vossos nomes vão parecer lindos lado a lado: Zé Luis e Paloma, Zé Luis e Brigitte, Zé Luis e Zjelka Marja. Trocam endereços de e-mail, claro. Mais tarde irás venerar o papelinho onde ela escreveu o seu contacto, irás olhar para ele dezenas de vezes.
Depois, se ela for escandinava ou se estiverem embriagados, despedem-se com um beijo nos lábios. Metaforicamente, não vais precisar de avião para voar. Num instante, vão passar-te pela cabeça todas as possibilidades de não apanhares o avião que tens para apanhar e ires com ela. Mas é impossivel, claro. Não há possibilidade de comprares bilhete para um voo que vai partir daí a cinco minutos e cujo check-in já fechou há muito. Além disso, as tuas malas já estão no porão do avião que tens de apanhar. Ai, Zé Luis, só te metes em porras. Já vais tendo a idade, mas, para aquilo que interessa, ainda estás longe, muito longe.
Por isso, escuta bem estes três conselhos que tenho para ti:
1- Não vale a pena continuares a procurar o amor em aeroportos;
2- Onde quer que estejas, telefona todos os dias aos teus filhos;
3- Escreve livros e cala-te."

14 março 2012

A crónica, de Fabricio Carpinejar

"A crônica é um jeito que o brasileiro descobriu para fazer poesia à paisana, contos à paisana, romances à paisana. É um golpe civil.
Crônica tem uma superficialidade enganosa: por ser curta e de temas prosaicos, parece que é inofensiva. Sua profundidade reside no tom baixo de amizade.
Sua agressividade é a ternura. Escrever crônicas é fazer amizades, contar segredos e confidências, é ajudar verdadeiramente as pessoas a não se conformarem."

Fabricio Carpinejar

08 março 2012

Cegueira dentro

Lembrei-me hoje que morreste. Sentei-me no teu banco, fumei um cigarro e fiquei à espera de te ver chegar. Demoraste muito. Continuas a demorar muito. O banco estalou.
O meu peso no sítio do teu peso. A minha mão pousada no sítio da tua mão. Os meus olhos no sítio exacto dos teus olhos.
E no entanto sem ti. E no entanto sem o teu peso superior ao meu, sem a tua mão, maior e mais forte que a minha, sem os teus olhos abertos a ver as roseiras em flor, tão mais bonitos que os meus.
Disseram-me que se tivesses vivido tinhas ficado cego. Sinto nos meus olhos a tua dor quando abriste os teus pela última vez, naquela cama fria do hospital, e te apercebeste de que tudo o que vias era negro, um negro sem fim que mergulhava mais e mais dentro de ti. Daquilo que eras, daquilo que és.
Não mais poderes conduzir, não mais poderes olhar as flores, não mais poderes ver o mar que amavas, não mais poderes ver o teu bisneto a crescer...
Não te apoquentes, avô, daqui a nada já passou, daqui a nada é um pesadelo, daqui a pouco o teu peso neste banco, os teus olhos a engolirem, honestos e bondosos, as roseiras em flor.
No inicio, se quiseres, enquanto estiveres mais fraco, eu pego na tua mão e levo-te à praia, descalço-te os sapatos, tiro-te as meias e ajudo-te a enterrar os pés na areia para que a possas sentir, macia, uma continuação de ti, do teu corpo. Não me importo de ficar ao teu lado, com a tua mão na minha, à espera que a água nos toque, continuação de ti, grande como os teus pensamentos, imensa como a tua vida.
Lembrei-me hoje que morreste, e que quando morremos não voltamos nunca mais, mas eu espero-te. Espero-te sempre.
Avô, o teu bisneto já sabe contar até vinte e dizer o abcedário, e tu nunca ouviste.

05 março 2012

Pessoas grávidas de sofrimento

Há pessoas que caminham grávidas de sofrimento. Cruzamo-nos com elas na rua e antes de elas saberem que se cruzaram connosco já nós sabemos quase o tempo de gestação. Antes de nos verem já nós as vimos as elas, de barrigão e cair dos olhos, com hálito do vómito do enjoo matinal.
Elas não sabem de mim, não sabem de mim tanto quanto eu não sei delas, mas eu sinto por elas coisas que nunca hão-de adivinhar. Apaixono-me por elas quase, e elas sempre sem saber de mim, sem saber sequer da minha existência. A caminho de alguma coisa, sentados em salas de espera, em pé junto à repartição das finanças, não sonham, nem imaginam que me comovem tanto, não sabem, nem imaginam que o meu olhar se prende no delas e os fica a ver a desaparecer no meio da multidão, pesados do sofrimento que carregam às costas, nas pernas, nos ombros...
Há dias em que lhes invejo a honestidade de sairem à rua com aquele camadão de dor espelhado nos ossos que se movem como quem se esqueceu de existir, noutros em que à boca cheia sou capaz de os chamar de cobardes, de me irritar tanto por não os ver sair daquela negritude toda, de não os ver com forças para, ainda que seja mentira, fingirem o sorriso que todos querem ver, porque os sorrisos são mais fáceis que as lágrimas, e toda uma infinitude de ideias pré-concebidas que todos estamos carecas de saber. Nestes dias, nos ultimos, sou má. Sou infinitamente má, e terrivelmente hipócrita. Não me orgulho disso. Não posso orgulhar-me disso. Envergonho-me tanto. Vai para me sair a palavra "cobardes" e eu coro, num passe de mágica tapo a boca com as mãos, quero esconder-me debaixo do banco do autocarro, convenço-me de que tudo aquilo em que penso me esta afixado na cara, qual placar de promoções dos supermercados, cheios de cores fluorescentes e letras gordas.
As pessoas grávidas de sofrimento são facilmente confundidas com parasitas, com vagabundos, com velhinhos cansados da idade que lhes parte a coluna, com os solitários que retiram prazer do silêncio. É sempre um risco tentar adivinhar quem realmente são as pessoas que se prenham da dor, é uma técnica que requer prática, "know how" e toda uma parafernália de caracteristicas que se podem "googlar" e encontrar em planos de negócios, junto aos pontos-chave a reter. A mais importante nunca ou raramente aparece, é certo, mas isso vem com a prática: empatia. Em boa verdade, e para se realmente reconhecer uma qualquer tribo, como esta e tantas outras, é preciso pertencer-lhe ou ter-se-lhe pertencido. Não existem fórmulas mágicas, não existem doutoramentos ou diplomas, é uma aprendizagem que se faz vivendo, observando e sofrendo, e para isso basta que nos olhemos ao espelho e sejamos honestos com a imagem que vemos reflectida:
alguém que em algum momento, actual ou anterior, tenha estado ou esteja tão completamente, e a rebentar pelas costuras, grávido de sofrimento.

02 março 2012

Paredes que gritam

Nunca ninguém foi feliz nesta casa.
Não percebo porque não a vendemos, alugamos, ou oferecemos. Se dependesse de mim chegava-lhe fogo, certificava-me de que mais ninguém aqui vivia.
Não somos nós, eu sei. Nós somos pessoas felizes. Temos ambições, sucessos, ganhamos prémios e temos sonhos bonitos quando nos vamos deitar.
È a casa. São estas paredes de tijolo e cimento que gritam a fingir que são mudas e nos convencem de que os gritos somos nós que os damos. Enquanto jantamos abrimos a boca e, em vez de entrar comida, sai um grito. Mentem-nos tanto estas paredes brancas, imaculadas, fingem-se puras. Puras e mudas...que mentira tão grande!
Vivemos aqui faz quase catorze anos e não me lembro de um só dia feliz. De um só dia tranquilo, confortável e seguro. E os outros, os das outras casas, dizem-me que são estas as coisas que fazem de uma casa um lar. Catorze anos é muito tempo para se ser sem-abrigo com tecto. Vamos queimar a casa, sim?
Acredita que por mim não há problema, juro que não fico triste nem choro.
Eu sei mãe, que tinhas a melhor das intenções quando a compraste. Que a quiseste decorar o melhor possível, que cá dentro quiseste criar a esperança de um futuro novo. Totalmente novo. Mas suspeito de que a esperança já não existisse, ou se existia todos falhámos redondamente no seu reconhecimento.
Não viemos para esta casa para sermos felizes. Viemos para esta casa para nos curarmos de coisas que não têm cura.
Sabes? Às vezes julgo que mais vale desistir, baixar os braços e aceitar. Só depois disto, muito depois, estamos autorizados a prosseguir. E para o processo é preciso ter um sitio especifico para onde vomitar a dor. Um sitio ao qual não tenhamos que voltar nunca mais. Um sitio ermo, sem eira nem beira, onde as paredes nos devem gritar para que lhes gritemos de volta e as deixemos aprisionar a gosma dolorosa que temos dentro.  Esse sitio foi esta casa. As paredes gritam e o chão vomita.
Nunca ninguém foi feliz nesta casa. Vamos desfazê-la, vendê-la, queimá-la, como preferires.
Já ficámos tempo demais, e quando permanecemos tempo demais acorrentados a fantasmas corremos o risco de nos tornarmos um deles.