26 maio 2012

Pão, pão; queijo, queijo

Eu tenho um filho. Não, isso não interessa para nada, eu tenho um filho. Sim, claro, sou escritora, cronista, letrista, guionista, e nos tempos livres gosto de acreditar que também pinto, canto e danço. Não é nada interessante, eu não sou nada interessante. Sou a coisa mais banal que vais conhecer ao longo da tua vida inteira, tenho órgãos e sangue e ossos e pele, como como toda a gente, fumo muito (o que é um péssimo hábito), apanho autocarros, acordo com o cabelo desgrenhado, tenho ramelas, há dias em que honestamente detesto o meu corpo. Não sou nada interessante.

Não, não me estás a ouvir. Eu tenho um filho. Não posso embebedar-me todos os dias até à quinta casa, não posso ir de férias sempre que me apetece, não posso ficar acordada a ver filmes até ser dia, todos os dias. E esse filho também tem um pai, e esse pai é importante na medida em que tenho um filho dele, uma história infinita da qual não me vou ver livre nos próximos anos. Vou falar com ele muitas vezes, não vamos discutir, porque nós não discutimos. Vou ser amiga dele, amiga a sério, de vez em quando vamos rir-nos muito, também vamos chorar, vamos falar da família um do outro. Nunca mais vamos para a cama um com o outro, isso nunca. Mas ele, taco-a-taco com o meu filho, vai ser um homem que não vai desaparecer da minha vida.

Eu sei, eu sei que gostas de mim. Mas não me estás a ouvir com atenção. Além de ter um filho, de ter um pai do meu filho, também tenho rachas dentro da alma. Penso muito na morte, fumo mais cigarros, tenho insónias, fico acordada até de manhã à janela a ver nada, a ver vazio, a ouvir os carros passarem na estrada. Depois disto tudo há a musica e o silêncio. Eu gosto dos dois, mais que gostar, preciso deles. Tenho dias absolutamente insuportáveis, em que cito muitas vezes

[“Não sentir ninguém nem falar nem me ver obrigado à condescendência ou à fraternidade. Um egoísta. Deixem-me. Não vou amar o mundo. Estou-me nas tintas.”]

e estou mesmo.

Gostas de mim? Ainda gostas de mim? Porque é que tu gostas de mim? Não gostes de mim, faz-me lá esse favor. É que se tu gostas de mim, eu vou ter de gostar de ti, e depois tu deixas de gostar de mim, e eu não vou ser capaz de deixar de gostar de ti. Porque os sentimentos me ficam agarrados à alma. E depois, com todas estas coisas, eu fico sem coração suficiente para continuar a ter um filho, um pai de um filho, a ser escritora, letrista, guionista, e aos poucos deixo de acreditar que sei pintar, cantar ou dançar. Depois eu fico um corpo esquecido de existir. Não gostes de mim. Eu vou fazer-te mal.

Não sejas parvo. É mais que óbvio que gosto de ti, isso vê-se logo. Mas quero que saibas aquilo que eu sou, que não te enganes, é horrível uma pessoa que gosta de outra pelos motivos errados.

Gostas mesmo de mim, certo, já percebi, não me grites, que eu não gosto de gritos. Mas escuta com atenção, depois não digas que eu não te avisei.

25 maio 2012

“Estilo” de Herberto Helder

“ Se eu quisesse enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende? …a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas, meses ou anos?”

...e já sei que me vou arrepender.

- Bom dia, alegria!
- Só se for para ti. Quem era aquele gajo que veio contigo para casa ontem à noite?
- Desculpa?!
- Tu ouviste bem o que perguntei. Não te armes em cabra...
- Mas tu agora controlas aquilo que eu faço? Era o que faltava...
- Com o basqueiro que fizeram, acho que todo o prédio ficou a saber. Não me parece que tenhas querido fazer segredo nenhum.
- Não é um segredo, mas também não é da conta de ninguém, muito menos da tua.
- Então podias ter feito menos barulho... Acordaste-me.
- Oh, não me chateies, dói-me a cabeça.
- Imagino, não parecias nada sóbria...
- Mas qual é a tua? 'Tás a armar-te em palerma?!
- Não me vais dizer quem é ele?
- Sei lá!
- Não sabes?!
- Deves ter muito a ver com isso, tu.
- Até tenho...
- Tens?
- Tu gostas é de mim.
- Hm hm, mas tu não me fodes, tenho que arranjar quem o faça por ti.
- Essa era escusada.
- Disse alguma mentira?
- Se o que queres é ser fodida, trata-se já disso.
- Cala-te!
- 'Bora lá... se é isso que te falta...
- Se é isso que me falta faço-o com quem me der na real gana e com quem, no dia seguinte não desapareça da minha cama e me deixe o coração em papa.
- Certo, é justo.
- É justo?! Mas tu és idiota? Ando a quecar com um parvalhão diferente todas as semanas, digo-te com todas as letras que o faço porque me deixas o coração feito em merda, e tu dizes que é justo?
- Hm hm
- Vai-te foder!
- 'Bora?
- 'Bora... mas é a ultima vez, ouviste?
- Hm hm, a última antes da próxima...
- Odeio-te!
- Não odeias nada. Tu amas-me!
- Hm hm, 'bora lá... antes que me arrependa.

... e já sei que me vou arrepender.

24 maio 2012

"Xanax azul-violeta" de Pedro Paixão

  "Deixei-me encurralar aqui. Não posso regressar a nenhum lado, a tempo algum. Nadja desapareceu de um dia para o outro. Todas acabam por desaparecer. Mais vale assim. Uma mulher a fugir é mais bela do que uma mulher parada. Nem a morte quis vir ter comigo, quanto mais o amor.
  Tento acalmar-me. Derreto um Xanax azul-violeta debaixo da língua. É verdade que estou em guerra. Estou em guerra porque estamos em guerra, não por vontade própria. Agora não tenho vontade própria, estou demasiado cansado. Já fiz o que tinha a fazer. Já perdi o suficiente e não consegui. Sei que tu não tens culpa Maria, Joana e Lia. Eu sei de quem é a culpa. Sou eu quem deve carregar comigo. E tu fizeste bem em desaparecer, Tatiana. Quem te agarra o corpo tem mais sorte do que eu. Eu sou pior. Quero logo a alma junto com o corpo. É um tremendo negócio. Meu amor, minha querida. De quem falo? De ti, claro, Maria, Lia e Joana.
  Maria, de pele macia, porque me mentias ao dizer que me amavas? Não bastava o resto, a vida inteira. Querias-me só para ti e depois não sabias o que fazer comigo. Na última noite beijaste-me como se fosse a primeira e no dia seguinte abandonaste-me na rua. Como pudeste? Ainda hoje não acredito. Por ti enlouqueci várias vezes para poder voltar a ficar lúcido.
  Joana dos cabelos encaracolados, muito pretos, a dançar à frente dos meus dedos. Joana fugidia, áspera, violenta. Nunca soube dizer quem eras e tu não tinhas paciência para a minha demora. Voltavas para as tuas amigas sem desculpas. Deixavas-me com um rasto do teu corpo, do toque dos teus cabelos, e escapavas. Quando me entreguei por completo já não me querias. Era tarde para tudo, dizias. Lia dos olhos suaves, enganadores. Mulheres como tu deviam trazer um aviso de morte. Nem o teu namorado gostava de mim, quanto mais tu. Deitada ao lado dele pensavas em mim. Mas não estavas disposta a arriscar tudo de uma só vez. Por isso deixaste que o amor viesse e não durasse, suave rapariga.
  Maria diz que Lia não é Joana. Mas engana-se. Joana é Lia por não ser Maria. E Maria sempre foi Lia e Joana.
  Levanto-me da cama e vou até ao quarto de banho. Fico a olhar-me no espelho a ouvir o barulho da água. Tenho de aguentar. Vou aguentar. Não é a primeira vez, não será a última. Uma história não tem fim, se no fim acaba a história.
  Toca o telefone. É Rony. Diz-me que vá passar uns dias de férias ao Sul, onde abundam as mulheres desconsoladas. Ou então ao Norte, nas cidades fortificadas. Arranja tudo por bom preço, pacote especial e coisas dessas. Rony, estou cansado. Não quero ir para nenhum lado. Vou ficar aqui até chegar o dia. E depois parto. Vim para acabar com a poesia e a poesia está a dar cabo de mim."

23 maio 2012

Diz-se por aí...

Foi sempre assim.
Iam jantar fora entre uma a duas vezes por semana. Pediam sempre o mesmo
[polvo à lagareiro para ela, bitoque para ele].
Enquanto esperavam permaneciam em silêncio, ele escrevia num caderno, ela desenhava na toalha de papel sobre a mesa.
Sobre pedirem sempre o mesmo prato ele gostava. Ela não.
No final da refeição discutiam sempre acerca de quem haveria de pagar a conta. O empregado, já habituado, ficava de longe a ver num misto de indignação e divertimento, pedaços de pão a voar pelo ar, e de uma ou outra vez, um copo partido no linóleo do chão.
Quando a discussão terminava sorriam, beijavam-se e saíam sempre sem pedir desculpa.
Percorriam o caminho até casa um em cada berma da estrada. Em silêncio. Ela gostava. Ele não.
Ao chegar, ele já cansado de escrever e ela farta de desenhar, faziam amor e fumavam cigarros a olhar um para o outro, até que o cansaço levasse a melhor. Adormeciam estranhamente abraçados. Ele gostava. Ela também.
Um dia, já o sol ia alto, ele perguntou-lhe porque não compravam uma televisão, e ela disse-lhe que a televisão emburrecia. Ainda assim, no dia seguinte, ele comprou um aparelho e, quando ela chegou a casa ficaram muito tempo em silêncio a olhar para aquela caixa preta, desligada.
Decidiram não pensar muito no assunto e foram jantar fora. Escolheram os mesmos pratos, discutiram sobre a conta, sorriram, beijaram-se, saíram sem pedir desculpa, regressaram a casa em bermas diferentes. Em vez de fazerem amor quiseram experimentar ver televisão.
Uns meses mais tarde, reza a história que ela deixou de desenhar e ele de escrever. Que deixaram de fazer amor. Que passaram a ir as mesmas uma ou duas vezes por semana jantar, mas ao McDonald's. Que em vez de discutirem acerca da conta, passaram a discutir de forma acesa, sem direito a beijos ou sorrisos, sobre qual o programa que um ou outro queria ver.
Diz, quem os conheceu, que se separaram eventualmente, e que a partilha que mais luta deu foi precisamente a caixa preta. Optaram pela custódia partilhada, quinze dias com um, quinze dias com outro.
Na primeira noite em que ele ficou sem a televisão lembrou-se que ela lhe tinha dito, antes de tudo ser destruído, que a caixinha emburrecia. Foi a casa dela e quando lhe bateu à porta, com o objectivo de agarrar na televisão e a deitar no primeiro contentor que encontrasse, ela lhe gritou lá de dentro
- Agora não, que estou a ver a novela!
Rendido e frustrado pegou no carro e foi ao McDrive, pediu um menu com batatas e bebida grandes, e se foi sentar a porta de uma loja de electrodomésticos, a ver várias caixas pretas piscarem.
Nunca mais ninguém os viu, mas as más linguas dizem que ela acabou por morrer de doença prolongada, daquelas com aqueles nomes enormes e estranhos, que o ZéPovinho comummente chama de "burrice crónica", e que ele, que voltou a escrever, editou um best-seller de seu nome "Merda da televisão".
Mas eu não sei de nada. Isto são as pessoas que falam, que contam histórias e acrescentam-lhe pontos, já se sabe.
A minha teoria é a de que eles, ainda antes de tudo ser destruído, fugiram juntos para o Nepal e que lá estão até aos dias de hoje.
Mas não posso garantir nada. Afinal de contas, eu só cá vim ver a bola.

21 maio 2012

A mais certa certeza

Meu querido, há tantas coisas que eu te não disse. E outras que disse, mas que não escutaste. E outras que julgas ter escutado, mas que, na realidade, eu não disse.
É sobre essas palavras que ficaram encaixadas num sitio sem nome que te quero falar. Hoje.
Escrever uma carta de amor é uma idiotice, uma lamechice sem eira nem beira, é um trago de um gin tónico sem água, que ferve e arde e queima. Mas eu não sei como te dizer, meu querido, que as letras que tenho para te dizer são afiadas como uma faca, rasgam como um serrote, queimam como combustivel ateado.
Não te quero dizer palavra nenhuma que amacie o coração, não há nada de honesto quando temos por assento uma almofada macia e fofa. Aquilo que eu tenho para ti não descansa, não recua, não adormece dentro de colchões de água ou bolas de sabão redondas que brilham, brilham, brilham.
Aquilo que eu tenho para te oferecer são lacunas, falhas, coisas semi destruidas, ruinas de um abraço, a ansiedade de um beijo, uma mão perto mas nunca no sitio exacto em que o calor se faça sentir por dentro.
Meu querido, isto não é uma carta de amor. As cartas de amor são para quem não ama, são para quem arrepia caminho ao escutar o comboio a apitar e, na iminencia do embate, se recolhe na plataforma e fica somente a sentir a brisa da sua passagem.
Escuta aquilo que está dentro das letras. Desde que cravaste a tua ausência no meu corpo que elas dizem coisas sem sentido. Que elas esperam que as toques para que tudo regresse à certeza que é o nosso amor. Á certeza de que no meu peito, e no teu peito, estão os nossos olhos a quebrar barreiras, a falarem sobre aquilo que ninguém ousa tocar, a acreditarem no infinito que é a nossa casa dentro de nós.
Se nos roubassem o dinheiro, as casas, as roupas, as guitarras, as canetas ou as folhas de papel que esvoaçam pelo ar, teriamos os nossos corpos embrulhados, o meu rosto no teu peito, as tuas mãos a percorrerem sem pressa o meu corpo nu. Se nos roubassem tudo, meu querido, estaríamos nus e os nossos caminhos seriam nossos ainda, apesar, no entanto. Inevitáveis.
Agora, neste instante, em que tenho o teu corpo dentro do meu corpo, em que tenho o teu coração já dentro do meu coração, não existe sitio nenhum onde fosse e estivesse mais feliz.
Agora, meu amor, a tua mão está na minha mão e todos os olhos se voltam só para nos ver, sem nos entenderem, porque somos loucos, insanes. Porque temos dentro de nós aquilo que poucos têm a coragem de sonhar:
"a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste"

"Pedro, lembrando Inês" de Nuno Júdice

"Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: "Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?" Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste"

19 maio 2012

True Story

È possivel amar o longe. Corrijo: só é possivel amar o longe.
Aquilo que ainda não aconteceu, mas que com toda a certeza vai acontecer.
Aquilo que ainda não se conhece, mas que sabemos estar à nossa procura.
Aquilo que não suportamos por estar longe, mas que amamos pela mesmíssima razão.
O perto é fácil, simples. Está à distância de um braço ou de um telefonema.
O perto toca-nos em sitios previsíveis, não há surpresa nos olhos daquilo que está perto.
Entre o perto e o longe há uma coisa que não se vê. Que não tem forma, nem cor, nem cheiro, nem toque. Está o limbo e a maior probabilidade.
Porque no perto está o que temos por garantido e que por isso descartamos, e no longe está a utopia, o imaginário, e é por isso que o perseguimos ininterruptamente.
Até nos lugares que se ama nos embrulhamos em dilemas. Colocamos-lhes rótulos, anexamos-lhes emoções.
Nunca havemos de regressar aos sitios onde já fomos demasiado felizes, porque temos a certeza que os cheiros serão os mesmos e nada poderá suplantar uma memória tão doce.
Se podia? Sim. Se devia? Certamente.
Mas não deixamos porque enquanto queremos à força salvar-nos do albúm de fotografias, não aceitamos que alguém ou algo nos destrua uma memória tão intima e tão somente nossa.
As probabilidades de regressarmos ao sitio onde fomos infelizes é maior, porque existe urgência em torná-lo um sitio bonito para reconstruir tudo.
E entre os sitios onde fomos felizes e os sitios onde fomos infelizes também há um limbo, há a verdade. Porque bem vistas as coisas, nunca somos tão felizes quanto julgávamos ter sido, nem tão infelizes quanto pensávamos.
Só com o tempo aprendemos a amar o meio caminho. E só com o tempo identificamos os sitios exactos onde sabemos poder deixar o coração a descansar. E o tempo demora sempre demasiado tempo.
Mas, bem vistas as coisas, olhando de cá para lá, já se passaram anos e eu tenho a certeza absoluta de que, se embrulhar o coração para lhe dar descanso, é contigo e é ali que ele vai saber-se finalmente em casa.

18 maio 2012

Porque vou para a cama contigo

Eu não vou para a cama contigo por causa da tua voz, nem dos teus olhos, nem daquilo que tens dentro da cabeça e do peito.
Tenho a certeza de que nenhuma destas coisas é desagradável. A tua voz soa-me bem e os teus olhos são bonitos, mas eu não quero saber aquilo que tu és.
Contigo na minha cama quero-te nua, quero-te animal e quero-te máquina.
Gosto que sejas inteligente e que tenhas coisas para dizer porque seria insuportável ter que te mandar embora logo a seguir ao orgasmo, mas chega-me acreditar que te amo naquele instante. Porque amo, não duvides disso.
Quando agarro no teu corpo e te sinto deixares-me entrar nele e fazer aquilo que eu quero, juro que te amo. Ès a mulher da minha vida, quero ir para a cama contigo todos os dias.
Mas depois tu vais à tua vida e eu vou à minha e o nosso amor ficou encostado aos lençóis à espera de nos ver chegar noutro dia qualquer. E esse dia qualquer não é todos os dias.
Eu vou para a cama contigo porque gosto do teu corpo, dos teus olhos fechados enquanto mordes o lábio, das tuas unhas cravadas na minha pele. Gosto do suor a escorrer-me pelas costas, do arrepio do sexo, da carne com carne, do macio da tua pele.
Quando foste embora da ultima vez estavas chateada, bateste a porta logo depois de me dizeres:
"Fode-me a cona, mas não me fodas a alma"
e eu fui pensar nisso.
Achei-te bruta, mas nunca te amei tanto.
E agora já passou. Não voltaste nunca mais, cumpriste com a tua parte, desapareceste.
Não te vou ligar nem procurar, mas devia. Afinal de contas deixas-te o teu amor agarrado aos meus lençóis e por muitas vezes que os lave ele não desgruda. O teu amor é gosma.
Devia ligar-te para que o venhas buscar, é teu. E devia ligar-te porque me sinto em falta para contigo, que não estou a cumprir eu com a minha parte, não te fodo a cona mas julgo estar a foder-te a alma, que é o contrário do que me pediste. E sempre me ensinaram a ser obediente.

A garrafa de Beirão

Estava tudo bem antes da noite chegar.
O frio gelava, mas o sol brilhava alto. Os cigarros eram muitos, mas não demasiados. Os olhos fechavam-se com calma por saberem que dentro nada os ia assustar, e que fora nada existia que pudesse subitamente desaparecer. Os olhos fechavam-se com calma, é preciso reter esta ideia.
Existiam certezas, convicções. Sabia-se como agir em qualquer circunstancia. Dentro da cabeça, no cérebro altamente racional, podia escolher-se, como na ementa de um restaurante, qual a atitude a tomar dependendo do que estava á frente. Era fácil. Simples. Metódico. Tinha o sabor das coisas certas e controladas.
Depois veio a noite. Vieram os copos. A garrafa de Beirão de que ninguém gostava e que, por isso, escorria ainda melhor. Não existia urgência em bebê-la, era exclusiva, bebia-se com calma. Com algumas certezas ainda. Vieram os patés caseiros, o esparguete à bolonhesa para o jantar, a aparelhagem que ninguém entendia e ouviu-se rádio

[os últimos êxitos da década de 70, 80 e 90]

Houve uma conversa na varanda, falava-se de politica, creio. Outra na cozinha, sobre as infinitas e intemporais questões do bom uso da lingua portuguesa.
Foi mais ou menos por esta altura que tudo se precipitou e as convicções fugiram entre os dedos à mesma velocidade com que mais beirões escorriam garganta a baixo.
Depois veio a musica. Depois da musica vieram os corpos a dançar. Depois dos corpos a dançar vieram os olhos e com os olhos ficou tudo escancarado.
Lá ficaram espalhadas, como um qualquer farrapo, as certezas, convicções, a metocidade, o controlo.
O frio foi embora. Os cigarros que já eram muitos passaram a ser muito mais que demasiados. Os olhos desaprenderam a calma, ganharam medos, receios. O que está dentro é pavoroso, o que está fora é a constante iminência do desastre.
Depois da noite chegar, já pouco importa que ninguém goste de Beirão, pouco importa que a garrafa seja exclusiva. Há que terminá-la depressa, deixá-la escorrer para dentro como um raio, para que se recupere o controlo, as certezas, a segurança.
Antes de tudo há o caos. O resto é pudim flan. O resto são amendoins. O resto é merda.

"Não desfiz a mala" de Pedro Paixão

"Não desfiz a mala. Não vou desfazer a mala. Tiro de dentro dela só o que preciso (...). Desfazer a mala e arrumar tudo nas três gavetas que vejo parece-me demasiado definitivo. Espero que algo aconteça e saiba para o que vim. Depois parto. Se puder. Se não for tarde demais. Se o que inteiramente ignoro permitir que parta. Se não, não parto.
O lugar de onde vim era-me insuportável. Aconteciam demasiadas coisas. Coisas que se atropelavam. Coisas sem sentido algum, abomináveis. A corrupção instalada. O Estado corrompido. Crianças violadas. Tudo isto no meio de um riso histérico e um desespero absoluto. O lugar de onde vim já tinha perdido, ou pior, estava na iminência de perder tudo o que era seu, um destino qualquer. Só restavam as casas, as ruas, uma paisagem em ruínas. Comecei a perguntar-me se os seres que tinham cara e falavam seriam humanos. Era dificil encontrar um resto, um rasto de humanidade.
Senti o terror de já ser como os demais: uma cara e uma boca desumanas. Só restavam as pedras, umas sobre as outras. E por baixo dos gritos, da tagarelice infinita, um silêncio de morte.
Comecei a chorar de manhã, à tarde e à noite. A chorar sem saber porque chorava. A chorar só. Comecei a tomar demasiados comprimidos, a beber cervejas a toda a hora, a fumar dois maços de cigarros. Não deixava de ser insuportável. Só quando dormia era suportável. Tive de fazer a mala com as poucas forças que me restavam e fugir dali num derradeiro acesso de lucidez ou de inconsciente coragem.
O que será feito de mim? O que será feito do mundo? O que deveria ser feito? Como deverá ser feito? E para que fim?
Acordei. Tomei um duche rápido. Tomei o pequeno-almoço e a minha alma sinto-a levemente a estremecer."

16 maio 2012

"Do que a vida poderia ter sido" de J.Carlos Barros

"Os amigos juntam-se e falam do passado,
da música que já não se ouve na rádio,
do Inverno em que choveu meses a fio
e o rio saiu das margens para desenhar

nos troncos das árvores os circulos imperfeitos
da idade. Eles sabem para si mesmos que falam
do que nunca existiu: das mulheres
que se renderam para sempre às palavras do amor,

das perdizes caindo de asa nas encostas
iluminadas da urze, das corridas memoráveis
do vinte e cinco de abril, das tardes de domingo
que haveriam de envergonhar a uefa

se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios
dos bombeiros voluntários. È disso que os amigos
falam: do que a vida poderia ter sido
se não fosse a filha da puta de vida que foi."

09 maio 2012

Mal agradecido

Ès um mal agradecido. Odeio-te. Tenho-te raiva. Tenho-te abandono, nojo e morte. E poeira e vidros partidos.
Ès um mal agradecido, já disse.
Andei de esfregona e vassoura na mão durante meses, a limpar, a esfregar, a aspirar todos os cantinhos e tu assentas arraial e só fazes bagunça, lixeira e basqueiro.
Comprei móveis novos, um sofá caríssimo para que te sentisses confortável.
Enchi o frigorífico e a dispensa, para que nada te faltasse.
Deitei fora cartas, diários e um número incontável de memórias, para que não te sentisses ameaçado, para que soubesses que este espaço agora era teu, que nele cabiamos os dois e mais ninguém.
Andaste a teu bel prazer por todas as divisões, não fechei nenhuma à chave, para que soubesses que não te escondia absolutamente nada.
 Disse-te onde podias encontrar tudo, desde o papel higiénico ao saca-rolhas, para que te sentisses realmente em casa.
Ès um mal agradecido idiota, pedante, estupido, insensível e ridiculamente bonito. Raios te partam, és mesmo bonito.
Agora ando às voltas com o coração em papas, não há esfregona nem vassoura que me valham porque de ti não sei como me esvaziar nem limpar.
Já disse e repito as vezes que forem precisas até que entendas aquilo que eu quero dizer quando te digo que és, sem duvida alguma, um mal agradecido.