30 outubro 2012

Corações nos sítios certos

Naquele dia, gostava de ter gostado de ti, de ter tido tempo para isso, ou tempo ou coragem. A memória de como as coisas se passam vai ficando gasta, mas às tantas foi um pouco dos dois: tempo e coragem.

Estavas sentado no banco à minha frente do comboio e tinhas os olhos mais tristes que vi até hoje, cabisbaixos e com olheiras profundas. Adivinhei-te quase lágrimas atrás das pálpebras, quis aproximar a minha mãos dos teus olhos e roubar-tas para os meus dedos, na minha cabeça imaginei-me a fazê-lo durante todos os minutos que demorou a viagem.

Não sei se o tempo tem alguma importância, todos os dias me convenço mais de que não. Aquele fim de dia podiam ter sido dias inteiros ou anos, que eu teria ficado ali, sentada à tua frente a pensar que gostava de ter gostado de ti. A saber-te fácil de gostar. Tinhas o cabelo grande e farto, desgrenhado, com algumas madeixas sempre a pender para a frente dos olhos, escuro como a noite, e por trás delas, das madeixas, lá estavam os teus olhos cheios daquela tristeza toda sem nome e talvez por isso maior ainda.

As pessoas são muito melhores no abstracto, sentir-se amor por elas antes que elas se encostem a nós, antes de as escutarmos e que a voz fique presa dentro. Podem ainda ser tudo aquilo que queremos, por baixo da roupa podemos desenhar-lhes o corpo, as formas, o toque, dentro do peito podemos construir-lhes comoções, duvidas, sonhos e com alguma imaginação, uma vida inteira. São seres quase perfeitos as pessoas que não se conhece, as que se me prendem à ponta dos dedos e me fazem suspirar, e comover, em dias como aquele, chegam mesmo a fazer-me chorar. E tenho pena, tanta pena de não ter gostado dele, de ter gostado de outras pessoas no lugar dele, de ter colocado um sem numero de esperanças em almas que de mim pouco queriam, ou o que queriam parecia-me pouco.

Já sobram poucas pessoas, demasiado poucas. É como se uma peste se tivesse instalado no mundo e a maioria não tivesse resistido. São já muito poucas e a vida vai ficando todos os dias mais vazia, mais solitária. Fazem-me falta as pessoas que têm o coração no sitio certo, e ele, tenho a certeza, tinha o coração no sitio mais certo: na vida inteira.

28 outubro 2012

Chuva

É Outono. Outubro, porque está a chover e cheira a terra molhada. Se não fosse a chuva e o cheiro podia ser Primavera, ou outra estação qualquer, mas não. È Outono. Outubro.

Tenho que ir supermercado e não me apetece. Quero ficar sentada a olhar para a janela cheia de gotas que se multiplicam com violência, a ouvir só o barulho da chuva e dos carros que aceleram lá fora. Apetece-me uma hora só disto. De nada. De coisa nenhuma. Pensando bem apetece-me um par de horas, ou mais ainda, ou uma semana inteira. Por mim podia não parar de chover durante o resto do ano, a vida inteira, e eu, feliz, ficava aqui sentada sem mexer um músculo, a esvaziar a cabeça para dentro da água que cai aos potes do céu. Adivinho-a quase tão cheia quanto eu. Tão exausta. Tão revoltada.

Tenho um cansaço enorme nas pernas e não fiz absolutamente nada. Quero dizer, ontem saí, andei muito, conheci um gato pingado cheio de piada e fui para a cama com ele, acordei estremunhada numa casa que não reconheci e corri escadas a baixo depois de lançar um “Bom dia, desculpa estou com pressa, ficaste com o meu numero, não ficaste?” e receber um grunhido que não fui capaz de identificar se significava anuição ou confusão. Não quis saber. Quis fugir. E agora estou aqui, fugitiva. O peso nas pernas pode ter sido de qualquer um dos fatores acima mencionados, incluindo o sexo, que se bem me recordo foi bom, nada de espetacular (afinal de contas não se pode esperar muito de uma queca repentina que veio sabe-se lá de onde e foi parar não sei a que sitio), mas bom.

Sinto-me cansada e deve ser da idade. Mas eu não tenho assim tanta idade, na verdade tenho pouca, 10 mais 10 mais 5 é pouco, mas tenho quase a certeza que o meu cansaço é da idade, se calhar os anos pesam-me no corpo mais do que às outras pessoas. Se calhar sou como os gatos e os cães, que quando têm 10 mais 6 já são idosos, e é uma sorte durarem outros mais 6. Deve ser isso.

Depois disso tudo, do meu desfasamento relativamente a todas as outras pessoas acho que tenho um grave problema relacional, digo, no que respeita precisamente às outras pessoas. Elas cansam-me, todas, sem exceção. Gosto muito de algumas, sei que sinto amor puro por outras, mas fora estas, detesto de um ódio de morte todas as outras. Tenho-lhes pena, ou nojo, ou eu sei lá o quê. Também já pensei que as amo, e é por isso que as detesto, por me fazerem sentir estas coisas por elas. Isto tudo também me cansa.

E depois, por cima (ou par baixo?) dessas pessoas pelas quais nutro algum sentimento mais profundo de forma negativa ou positiva, existem as outras pelas quais sinto uma indiferença extremosa. Bem sei que há alturas em que a indiferença também é um caminho, tão respeitável como qualquer outro, sublinho, mas essa indiferença faz com que incorra de forma constante em vinganças contra mim (ou às outras acima referidas) nestes indivíduos que me são tão indiferentes quanto um molho de alface na secção dos frescos do supermercado (e por falar nisso, não me posso esquecer que tenho de lá ir). Foi o caso do gato pingado da noite passada, eu sei lá às tantas até é uma ótima pessoa, tanto quanto sei pode bem ser o homem da minha vida, mas deitar-me com ele foi tão simples, básico e animal quanto sentir o estomago roncar de fome quando estou horas a mais sem comer. E isto é de um pedantismo atroz. Aquela coisa enfadonha e desesperada de tentar encontrar em todos os rostos que nos olham alguém a quem queremos desejar “boa noite”, quem cuide de nós, de quem queiramos cuidar. Mas depois nunca passa de uma ideia, a ideia da paixão. Perdem piada, consistência. Apesar do desapego já tive, e isto juro a pés juntos, alturas em que me forcei a olhar essas criaturas como humanos, gente com mais gente dentro, como eu, como as pessoas que eu amo, mas que não sabia que ia amar antes de as conhecer, e porque não dar uma oportunidade? Porque não acreditar? Eu sei lá, porque não contornar a ideia e torna-la real? Mas entretanto fica tudo confuso, muito confuso, demasiado confuso. Ninguém quer dar satisfações de coisa nenhuma, ninguém quer ter de provar nada. Isso também deve ser da idade, tenho a sensação que a determinada altura passasse a julgar que já não há nada a provar, que tudo aquilo que tínhamos que mostrar já mostrámos e quem viu, viu, quem não viu, bom, azar, tivesse visto. E seguindo esta ordem de ideias, se essa pessoa não viu, não estava lá, é porque não interessa, e não é agora, depois de tantos frascos partidos no chão, de tantas gotas de chuva a baterem no vidro, que vamos ter de começar novamente e sermos um livro. È cansativo começar a contar a história toda outra vez, e de cada vez de se tem de a recontar, existem mais dias, mais anos, mais acontecimentos que me mudaram e que por isso mudam tudo o resto. Quando começo a pensar nisto, que vou ter de ser menina outra vez, que vou ter de reviver tudo novamente, então perco as forças e apetece-me ficar só assim, quieta, sentada nesta cadeira a ver as gotas da chuva baterem violentamente na vidraça.

Nunca será mais fácil descer as escadas de um prédio a correr para fugir áquilo que deixei pendurado no colchão, mas pelo menos será mais certo que aquela pessoa, aquele corpo que de certeza tem uma alma lá dentro, nunca me pedirá satisfações, nunca me vai questionar os motivos, nunca me vai magoar porque não sabe onde o fazer nem os pontos chaves a pressionar, e em última instancia não, eu também nunca lhe irei infligir nenhum tipo de dor, nunca serei a sua desculpa para que chore ou se entristeça.

Estou cansada e isto deve ser da idade. E de repente, assim só de repente, sinto-me vazia e sozinha. Podia chover para sempre e eu aqui, a ver as gotas baterem como martelos no vidro

(espera, deixou de chover… isto tem de ser reformulado, o que é que bate, afinal de contas?)

Podia chover para sempre e eu aqui, a sentir o medo bater como martelos no peito.

26 outubro 2012

O Gaspar era um excêntrico

O Gaspar era um excêntrico. Eu tinha muito medo dele, não pela excentricidade, mas por aquilo que ela me fazia. Explico: eu tinha muito medo do Gaspar porque sempre que o Gaspar regressava eu me apaixonava por ele. Era coisa para durar uma semana, um mês no máximo. Depois levava-o ao aeroporto, caminhava distraidamente junto à mochila encaixada nas costas dele, e ele ia embora. Ficava longe sempre muito tempo. Os primeiros dias sem ele eram tortuosos, custava-me a habituar-me a mim sem ele, que era uma coisa totalmente distinta de mim com ele.

Também nunca gostei muito do que eu era com ele, mas pior era sem ele (pelo menos nos primeiros dias). Bebíamos sempre demais, largava-mos gargalhadas muito altas, estávamos sempre ou a correr ou então tudo se passava em câmara quase lenta. Nada era certo nem previsível, não era sequer possível fazer planos com o Gaspar, a coisa que ele mais detestava eram planos, reservas, marcações prévias. Quando queríamos ir ao teatro era na hora, porque o cartaz era bonito, porque era barato, porque ainda existiam lugares vagos.

Houve uma dia, disso lembro-me nitidamente em que ele me disse

- E se eu ficar?

- O quê?

- E se eu ficar?

- Ficares onde?

- Aqui. Contigo.

- Como assim? Ficas sempre aqui comigo…

- Não. Não estás a perceber. Se eu ficar mesmo, se não voltar a ir embora. Que achas?

A isto respondi-lhe com um estalo que ecoou durante um tempo que me pareceu imenso. Chorei muito e perguntei-lhe se quem saia imediatamente era eu ou ele, mas que alguém tinha que sair mais que não fosse um par de horas. Saí eu. Contava que quando regressasse ele já lá não estivesse mas estava, precisamente na mesma posição em que o tinha deixado.

- Olha lá, que merda foi aquela?! Estás louca?!

Abracei-o com força e disse-lhe baixinho:

- Nem penses em ficar. Se ficares desapareces, deixas de ser tu, e eu quero-te a ti, assim, vadio. É disso que é feito o meu amor por ti. Se ficares, garanto-te, é a nossa sentença de morte.

No dia seguinte ele voltou a partir. Acompanhei-o ao aeroporto, caminhei distraidamente junto à mochila encaixada nas suas costas e regressei a casa cheia dele, do cheiro dele e da certeza de que a semana seguinte ia ser excruciante. E foi. E é.

O avião do Gaspar despenhou-se ainda em solo português, ligaram para mim porque era o único numero de contacto que ele tinha. Tive de ir reconhecer o corpo, ou aquilo que eles chamaram de corpo, que na realidade era um amontoado de carne e sangue e ossos absolutamente irreconhecíveis. No dia a seguir ao funeral sonhei com ele, e em todos os dias seguintes. Ontem, passados quatro meses do acidente, ele falou comigo no sono

- Afinal sempre fiquei. Vês?! E não desapareci, não mudei, assinei a minha sentença de morte sem assinar a nossa. Afinal sempre fiquei.

e piscou-me o olho no exacto momento em que acordei. Passei o resto da madrugada a rir-me, e a chorar a rir, ou a rir a chorar, ou tudo isso misturado.

- Gaspar, seu desgraçado, afinal sempre ficaste.

O Gaspar era um excêntrico, e eu tinha muito medo dele: fazia-me feliz como é já impossível ser-se feliz. Nunca fizemos planos nenhuns, nem o nosso fim foi planeado. Aliás, o nosso fim não aconteceu, aconteceu-nos, e essa foi a única forma de fazermos o nosso amor valer a pena. O termos sido condenados, no final de contas a ficar, porque na realidade para que outro sitio poderíamos ter ido? Nenhum lugar no mundo seria seguro para o nosso amor vadio. Só a morte Gaspar. Só a morte.

24 outubro 2012

Loucura dentro

Tenho a certeza de que sofro de uma doença terminal. Sei que pouco a pouco a minha cabeça se adormenta, tenho dias em que não sou capaz de sair desse estado catatónico e o pior é que isso me deixa extasiada. Não movo um único musculo e isso dá ao meu cérebro total liberdade, borbulha e luta, e grita e chora, e ri-se desmedidamente. Sei que estou a enlouquecer, não que isso me incomode grandemente, mas existem ainda uma série de coisas que gostava de fazer e julgo que a minha insanidade, uma vez estabelecida, não mas vai deixar completar. Entristece-me, é certo, mas vejo os carros fumegarem, e as pessoas a caminharem, os cafés a abrirem portas pela manhã e à noite a fechá-las, as luzes dos semáforos passam vezes sem conta de vermelho para verde, de verde para amarelo, e depois regressam, impenetráveis ao vermelho. Tudo isto me incomoda, claro. Mais que me incomodar, enerva-me. Quero dizer ainda um sem numero de palavras, sentir na palma dos pés texturas que nunca tive coragem de sentir, beijar peles que nunca toquei sequer, abraçar animais que me metem medo, entrar em casas abandonadas e adivinhar-lhes a vida pendurada nas cortinas velhas e rasgadas que alguém deixou para trás. Mas o problema, além da minha doença, é que de todas estas coisas que ainda quero fazer, a nenhuma faz justiça o movimento frenético deste mundo. Lógico que também acho que a minha aversão e nojo pelo mundo também se deve à minha condição. Talvez uma coisa não se dissocie da outra e estou condenada a este ciclo pútrido, que fede a saliva e a suor, e a gosma e a merda.

Tenho a certeza de que estou a morrer. No silêncio, se o escutar (e tenho-o escutado) sou capaz de catalogar na perfeição quais os órgãos do meu corpo que vão dar de si em primeiro lugar. Sinto-os respirarem ofegantes, alguns já só gemem, outros ainda se dão ao trabalho de berrar, mas todos eles, um por um, qual animal a entrar na arca de Noé, se vai desligar permanentemente. E eu, que os tenho dentro e não os posso arrancar para fora de mim, vou ter que assistir à morte gradual e suplicante daquilo que faz de mim um corpo movente, quente, funcional. Isto também me entristece. Não me enerva, só me entristece.

Já não quero nada disto. Se pensar com alguma clareza (sendo que a clareza também vai desaparecendo) compreendo que nunca quis. Fui eu quem me pôs doente assim, foi a crença de que não querendo absolutamente nada disto, seria capaz de transformar e metamorfosear o mundo a meu bel prazer, ir moldando devagarinho, com paciência, até que se assemelhasse mais e mais àquilo que julgava (e julgo) ser o sitio onde gostava de ter vivido estes anos todos. E agora que falo em anos… tantos anos! Tantos anos para quê? Que imbecilidade ter-me sujeitado tantos anos a esta podridão, ter-me levado lentamente à loucura, ter-me importando com isto, com aquilo, com aquel’outro, ter-me obrigado a respirar fundo tantas vezes quando só me apetecia rasgar a pele que reveste o meu corpo e deixar as entranhas à mostra, as mesmas que estou de estarem a morrer neste preciso momento dentro de mim.

Tenho a certeza de que sofro de uma doença terminal. Tenho a certeza de que estou a enlouquecer. Tenho a certeza de que não quero mais nada disto. Tenho a certeza de que estou exausta, quebrada, cansada. E tenho a certeza de que tudo o resto são incertezas. Vou recostar-me a ler um livro, a encher-me das certezas de outra pessoa qualquer… e lembrei-me agora mesmo, neste instante, que essa outra pessoa qualquer é de certeza uma daquelas que eu não suporto, que eu já não suporto. Basta, até os loucos merecem sossego!

16 outubro 2012

Dançar entre as gotas da chuva ou O tempo mata

Faz tempo que o tempo se fazia na palma da nossa mão. A culpa não é de ninguém, e se há alguém a quem atribuir culpa não é a nenhum de nós. É que faz sempre tanto tempo, passam-se sempre tantos anos em cima dos nossos ossos, a demandada das horas desenfreada é sempre um cansaço grande que nos dobra, e nos molda, e nos quebra e que eventualmente também nos mata. Mata-nos assim devagarinho, como quem não quer matar, mas mata. Como quem quer só provocar uma ligeireza de dor que passe rápido mas assuste, mas que no final e feitas as coisas, mata muita coisa, mais que balas, ou morteiros, ou facas, ou veneno para ratos. É que nós não sendo ratos, somos. Suportamos um numero pavoroso de doenças, gostamos do esgoto da alma porque lá faz frio mas é mais confortável, roemos o coração de dentro para fora como se fosse um queijo, deixamos-lhe buraquinhos, buraquinhos por onde entra muito ar, muita chuva, em dias de tempestade até lá entram, com jeitinho, os relâmpagos.

A culpa não é nossa. O tempo passa sempre demasiado rente à nossa pele e nós não damos por ele, queremos muito mas quando olhamos ele já foi à vida dele, sempre naquela labuta exaustiva de quem é muito atarefado quando na realidade não tem absolutamente coisa nenhuma a fazer, nenhuma tarefa real a não ser exactamente essa, a de passar. E pode passar-se devagarinho, já passámos devagarinho tantas vezes em frente ao jardim, lembraste? Desacelerávamos o passo e caminhávamos vagarosamente, aborrecidamente em frente aos portões altos sempre fechados daquele jardim. E que bonito jardim que era, secretamente sempre lá quisemos entrar, nunca tivemos coragem mas agora gostávamos e ter tido. Eu gostava, tu não? Claro que sim. O que realmente queríamos era que nos deixassem viver lá dentro, agachados numa árvore a ver cair a chuva e a dançarmos entre as gotas como se fossemos mesmo capazes de voar, planar entre elas suavemente, sentir o frio húmido da nossa pele despida entre as gotas da chuva. Só queríamos isso, e isso não era nada,

Há quem queira tantas coisas, quem peça tanto, quem exija o mundo e o mundo não chega. Nós só queríamos um lugar tranquilo onde pudéssemos finalmente descansar. Pedíamos pouco, e nem esse pouco tivemos. Que desgraça o tempo, que infortúnio desejar tão pequeno e o tempo querer à força dar-nos o grande, o efémero, o material, o fútil, o acessório.

A culpa não foi nossa, Se há alguém a quem atribuir culpa não somos nós. Foi o tempo que já faz tempo que passou na palma da nossa mão. Foram os portões sempre fechados do jardim. Foi a falta de coragem. Foi o tão pouco ser tão perfeito que o tempo, ignóbil, nos convenceu que era tão pouco e tão perfeito que não existia, por isso deu-nos o grande, o efémero, o material e o fútil, e nós aceitámos. Aceitámos e deixámos de conhecer o caminho até ao jardim, passamos por ele com o tempo no bolso e ele arrasta-nos, empurra-nos, obriga-nos a correr e a passar. A correr e a passar. A correr… e…  a passar.

12 outubro 2012

A vida foi doce nas Fontainhas

A vida foi doce e lenta nas Fontainhas. Se a lambêssemos, se tivéssemos essa coragem, ela sabia a marmelada com queijo, a dióspiros maduros, a bacalhau na brasa e a massa com atum, tudo confeccionado com requintes de ternura e esperança e vontade e ilusão boa de sentir.

Lembro-me bem das janelas, podia senti-las agora mesmo, tocar-lhes devagar, puxar a maçaneta e abri-las de par em par, respirar fundo o ar frio que fazia esvoaçar os meus cabelos e me fazia chorar da alegria imensa que era aquela paz toda a inundar as nossas paredes. Fomos felizes em cada recanto.

Nunca tivemos sofá, só um puff, umas almofadas no chão e as cadeiras da mesa de jantar. Um móvel pequeno cheio dos nossos CD’s, com a aparelhagem na prateleira do meio, e a televisão pequeníssima e velha na do topo. As paredes tinham textura, papel de parede amarelado com veios sedosos que se podiam tocar com ternura, onde colávamos os posters que roubávamos das paredes da rua que anunciavam concertos que não podíamos ir ver porque o dinheiro não dava para tudo.

A minha mesa de trabalho estava encostada a uma das janelas da sala, sempre cheia de nós: tecidos, tintas, negativos, material de desenho, a tua câmara, os meus livros. A alegria de comprarmos um CD e o ouvirmos até à exaustão, dia-após-dia, noite a dentro.

A rua era calma, éramos poucos mas tínhamos sempre mercado onde comprávamos fruta e legumes, e a antiga feira da Vandôma de onde trazíamos sempre qualquer coisa que fosse barata mas bonita, principalmente que fosse nossa. Em frente um muro velho onde, invariavelmente, estava sentada a D. Teresinha, uma senhora de idade cheia de uma vida dolorosa (via-se nos ossos, no caminhar, no sorriso envergonhado, que tinha sido dolorosa) por quem nos apaixonámos instantaneamente, que nos segurava nos braços suplicante por um pedaço de pão que fosse. E nós partilhávamos. Nunca nos esquecíamos dela, fizesse chuva ou sol. Nunca me hei-de esquecer do olhar dela, sempre tão dentro do nosso.

O nosso quarto tinha o colchão no chão e um guarda-fatos, um baú pequeno com as nossas coisas (velas, algumas pulseiras, fotos especiais, recordações), um candeeiro pousado no soalho (ora de um lado da cama, ora do outro, dependia de quem ficava até mais tarde acordado) e um rádio que transportávamos diariamente para todos os cantos da casa.

Onde mais falávamos era na casa de banho. Um de nós na sanita e o outro sentado no chão (com o rádio), ou um de nós a tomar banho e outro na sanita (sempre com o rádio). Ficámos sem luz na zona do quarto e da casa de banho durante uns bons seis meses, eram extensões por tudo quanto era sitio, o candeeiro servia de lanterna de um lado para o outro e os banhos eram tomados quase às escuras. Continuava a ser doce e lenta a vida nas Fontainhas.

Nunca devíamos ter saído de lá. Fomos felizes como é hoje impossível ser-se feliz. Qualquer dia volto lá. A D. Teresinha já deve ter morrido, mas devem viver pessoas lá em casa. Toco-lhes à campainha, subo para um chá e digo-lhes:

- Foi tão doce viver aqui…

Abro as janelas de par em par e sinto o frio encher-me os olhos de lágrimas novamente. Depois desço as escadas rapidamente, percorro a rua a passos largos e nunca mais lá regresso. Dizem que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, e eu acredito. Hei-de sempre acreditar.

10 outubro 2012

Horas penduradas no tecto

Passei a noite em branco, às voltas com o coração nas mãos a ver as horas saltar do visor. Foi pavoroso. As horas saltavam e penduravam-se no tecto, inquisidoras. Que inquerem? Que querem? É de mim ou vocês são todas as horas do planeta, com o peso de todas as pessoas que passaram esta noite em branco com o coração nas mãos a ver-vos saltitar para fora do quarto, e vocês a percorrerem as ruas, as vielas mal iluminadas, os bosques escuros e frios, as praias de areia branca e fina, tão fina que parece o pó que se acumula nas prateleiras dos livros que já ninguém vai voltar a ler?

Estive acordada horas e horas a fio, a tentar trocar as voltas às emoções, a desfragmentar os momentos, a muito custo a reduzi-los a insignificâncias que eu sei que não merecem mas que, esta noite que passou, eu não tive coragem suficiente para reconhecer.

Ás vezes apetece-me desistir. Falar de uma vez por todas, deitar tudo por terra e aliviar o peso das tantas comoções que tenho compactadas em mim. Não suporto já andar sempre tão cansada, tão triste, tão sedenta de coisas às quais não sei dar nome. Aspiro ao total esquecimento de mim, já não tolero esta náusea, este querer sem querer, a melancolia profunda com que preencho as horas para não ter de as encher com a ternura que  não quero sentir.

Passei a noite em branco a tentar não sentir e tudo aquilo que fiz foi sentir. As fórmulas mágicas deixaram de funcionar, o botão que me desligava deu sumiço. E como é que eu pude ser tão imprudente para deixar que isto acontecesse? Como pude ser tão irresponsável e arrogante, como pude esquecer que todas as histórias já foram contadas e que agora, neste instante, o mundo estremeceu debaixo dos meus pés.

É capaz de ser do sono. Sim, é realmente capaz de ser do sono. Tenho a certeza de que se dormir sobre este assunto, quando acordar ele já não existe. Ele já não existe. Já não existe. Que na verdade nunca existiu, isto foram só os efeitos da ressaca. Uma pessoa deita-se com um corpo qualquer e depois já passou. Se eu me deixar tocar por outra pele, já passou. Se substituir isto por outra emoção, já passou. Se eu mantiver a fórmula que sempre funcionou, já passou. Se eu for capaz de me esquecer que tenho coração, já passou. Se eu deixar de sentir, tenho a certeza que já passou.

[…e porquê? porque é que ainda não passou?…]

07 outubro 2012

Amorzade

Mas porque e para que raio havemos de ser todos amigos? Amiguinhos daqueles do coração, que gostam tanto uns dos outros que se nos aperta o peito só de imaginar que algum desses amigos se encontra em apuros, doente, de coração partido ou lágrima a escorrer no peito?

Para que é que serve essa coisa toda de nos amarmos todos assim, de forma tão trágica, tão terminal, como se o rodopiar do mundo a qualquer momento nos pudesse levar vendaval a dentro perdidos no infinito Universo de onde já não sabemos voltar?

É um fardo terrível, uma pessoa sofre horrores com tanta ternura, com tanto carinho e incondicionalidade. Somos tão amigos, tão amigos que usamos o peito uns dos outros a nosso bel-prazer, ele há dias em que é almofada fofa onde deitamos a cabeça e a deixamos a descansar, ele é copo de vinho onde afogamos infortúnios, ele é bola de malabarismo em mãos de palhaço que nos faz rir até que a dor no estômago não seja mais suportável. Usamo-nos tanto, roubamos tanto uns dos outros.

Chega a ser penoso, uma exigência emocional de tal magnitude que existem inclusive os dias em que julgamos que sem eles, os amigos, não sobrevivemos, falta-nos o ar, sufocamos tanto dentro do amor absoluto que nos temos uns aos outros.

Há dias em que me apetece chorar. Em que vos tenho tanto dentro de mim que me sinto cheia, quase indigesta. Há dias em que choro para vos expulsar de dentro de mim, por medo de, um dia em que o meu peito vos seja necessário como almofada, copo de vinho, bola de malabarismo, eu já não tenha espaço para vos acolher e vos conseguir abraçar com todo o sangue, todos os poros, toda a ternura de que é feito o sentimento que tenho guardado só para vocês.

A culpa disto é vossa, do vosso amor, e do meu. In-con-di-cio-nal.

Desumanidades

“O lugar de onde vim era-me insuportável. Aconteciam demasiadas coisas. Coisas que se atropelavam. Coisas sem sentido algum, abomináveis. A corrupção instalada. O Estado corrompido. Crianças violadas. Tudo isto no meio de um riso histérico e um desespero absoluto. O lugar de onde vim já tinha perdido, ou pior, estava na iminência de perder tudo o que era seu, um destino qualquer. Só restavam as casas, as ruas, uma paisagem em ruínas. Comecei a perguntar-me se os seres que tinham cara e falavam seriam humanos. Era difícil encontrar um resto, um rasto de humanidade. Senti o terror de já ser como os demais: uma cara e uma boca desumanas. Só restavam as pedras, umas sobre as outras. E por baixo dos gritos, da tagarelice infinita, um silêncio de morte.

Comecei a chorar de manhã, à tarde e à noite. A chorar sem saber por que chorava. A chorar só. Comecei a tomar demasiados comprimidos, a beber cervejas a toda a hora, a fumar dois maços de cigarros. Não deixava de ser insuportável. Só quando dormia era suportável. Tive de fazer as malas com as poucas forças que me restavam e fugir dali num derradeiro acesso de lucidez ou de inconsciente coragem.

O que será feito de mim? O que será feito do mundo? O que deveria ser feito? Como deverá ser feito? E para que fim?

Acordei. Tomei um duche rápido. Tomei o pequeno-almoço e a minha alma sinto-a levemente a estremecer.”

Pedro Paixão em “Quase gosto da vida que tenho”

04 outubro 2012

Amor em tempos de pré-revolução

Éramos um país à beira da revolução.

Não sei como fui tão burro que me apaixonei e por ti, e pior, tu tão desatenta que acabaste por te apaixonar por mim também. Que estupidez, que falta de cuidado, uma irresponsabilidade que duas pessoas se apaixonem, tenham a terrível ousadia de se apaixonarem quando o mundo inteiro está em guerra, quando existem pessoas a passar fome, onde em cada esquina proliferam e se reproduzem sem-abrigos que sabe deus receberem um sorriso ao longo de todo o dia, e nós, ali, inconsequentes, apaixonados um pelo outro, a trocarmos beijos sobre o rebenta-minas, a abraçarmo-nos em bicos de pés sobre espingardas, a darmos as mãos com força em volta de cartazes revolucionários que falam da injustiça, da raiva, do desalento e da miséria.

Não sei como fomos tão idiotas, os dois, que a culpa não morre solteira. Como ao primeiro contacto nos estatelamos no chão um do outro, dentro do peito, e no mesmo momento, à nossa volta as pessoas perdiam casas, empregos, dignidade e lentamente se desfaziam em passes mágicos malabaristas para serem capazes da façanha de colocarem uma refeição na mesa para os filhos.

Egoísmo puro, caturrice desconexa, teimosia exacerbada, a de querermos à força amarmo-nos num sitio falido como este. Quem poderia aceitar emoções em polvorosa como aquelas que tivemos a insensatez de sentir? Como não julgar o nosso amor por indiferença pelos danos dos outros?

Fugimos para que não nos privassem, para que não nos enfiassem olhos dentro palavras de ódio, de rancor, de revolta. A nossa pena era o contágio, tínhamos medo, muito medo de que todo aquele sofrimento entrasse dentro de nós e nos condenasse ao abandono das coisas que por vergonha e pudor têm de desaparecer.

Horror de nos termos apaixonado num sitio débil como este país à beira da revolução. Embrulharemos e protegeremos o nosso amor até que nos falte o fôlego, nunca iremos perdoar àqueles que fizeram tanto mal à terra que nos viu nascer e nos repetem incessantemente que o é o dinheiro que nos move, que nos reduzem a números sem tecto, que amor é ficção, é novela, é utopia. Repetiremos de volta, até que as espingardas nos explodam debaixo dos pés, que o amor, esse, será sempre o mais importante. Ainda que insensato, estúpido, inconsequente, irresponsável. Aliás, principalmente por tudo isto, e por muito muito mais.