16 outubro 2012

Dançar entre as gotas da chuva ou O tempo mata

Faz tempo que o tempo se fazia na palma da nossa mão. A culpa não é de ninguém, e se há alguém a quem atribuir culpa não é a nenhum de nós. É que faz sempre tanto tempo, passam-se sempre tantos anos em cima dos nossos ossos, a demandada das horas desenfreada é sempre um cansaço grande que nos dobra, e nos molda, e nos quebra e que eventualmente também nos mata. Mata-nos assim devagarinho, como quem não quer matar, mas mata. Como quem quer só provocar uma ligeireza de dor que passe rápido mas assuste, mas que no final e feitas as coisas, mata muita coisa, mais que balas, ou morteiros, ou facas, ou veneno para ratos. É que nós não sendo ratos, somos. Suportamos um numero pavoroso de doenças, gostamos do esgoto da alma porque lá faz frio mas é mais confortável, roemos o coração de dentro para fora como se fosse um queijo, deixamos-lhe buraquinhos, buraquinhos por onde entra muito ar, muita chuva, em dias de tempestade até lá entram, com jeitinho, os relâmpagos.

A culpa não é nossa. O tempo passa sempre demasiado rente à nossa pele e nós não damos por ele, queremos muito mas quando olhamos ele já foi à vida dele, sempre naquela labuta exaustiva de quem é muito atarefado quando na realidade não tem absolutamente coisa nenhuma a fazer, nenhuma tarefa real a não ser exactamente essa, a de passar. E pode passar-se devagarinho, já passámos devagarinho tantas vezes em frente ao jardim, lembraste? Desacelerávamos o passo e caminhávamos vagarosamente, aborrecidamente em frente aos portões altos sempre fechados daquele jardim. E que bonito jardim que era, secretamente sempre lá quisemos entrar, nunca tivemos coragem mas agora gostávamos e ter tido. Eu gostava, tu não? Claro que sim. O que realmente queríamos era que nos deixassem viver lá dentro, agachados numa árvore a ver cair a chuva e a dançarmos entre as gotas como se fossemos mesmo capazes de voar, planar entre elas suavemente, sentir o frio húmido da nossa pele despida entre as gotas da chuva. Só queríamos isso, e isso não era nada,

Há quem queira tantas coisas, quem peça tanto, quem exija o mundo e o mundo não chega. Nós só queríamos um lugar tranquilo onde pudéssemos finalmente descansar. Pedíamos pouco, e nem esse pouco tivemos. Que desgraça o tempo, que infortúnio desejar tão pequeno e o tempo querer à força dar-nos o grande, o efémero, o material, o fútil, o acessório.

A culpa não foi nossa, Se há alguém a quem atribuir culpa não somos nós. Foi o tempo que já faz tempo que passou na palma da nossa mão. Foram os portões sempre fechados do jardim. Foi a falta de coragem. Foi o tão pouco ser tão perfeito que o tempo, ignóbil, nos convenceu que era tão pouco e tão perfeito que não existia, por isso deu-nos o grande, o efémero, o material e o fútil, e nós aceitámos. Aceitámos e deixámos de conhecer o caminho até ao jardim, passamos por ele com o tempo no bolso e ele arrasta-nos, empurra-nos, obriga-nos a correr e a passar. A correr e a passar. A correr… e…  a passar.

2 comentários:

  1. Apenas uma curiosidade: as coisas que escreve vêm de certas lembranças?

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  2. Olá Bruno. Sim, claro. De lembranças, memórias, sentimentos...

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