08 março 2012

Cegueira dentro

Lembrei-me hoje que morreste. Sentei-me no teu banco, fumei um cigarro e fiquei à espera de te ver chegar. Demoraste muito. Continuas a demorar muito. O banco estalou.
O meu peso no sítio do teu peso. A minha mão pousada no sítio da tua mão. Os meus olhos no sítio exacto dos teus olhos.
E no entanto sem ti. E no entanto sem o teu peso superior ao meu, sem a tua mão, maior e mais forte que a minha, sem os teus olhos abertos a ver as roseiras em flor, tão mais bonitos que os meus.
Disseram-me que se tivesses vivido tinhas ficado cego. Sinto nos meus olhos a tua dor quando abriste os teus pela última vez, naquela cama fria do hospital, e te apercebeste de que tudo o que vias era negro, um negro sem fim que mergulhava mais e mais dentro de ti. Daquilo que eras, daquilo que és.
Não mais poderes conduzir, não mais poderes olhar as flores, não mais poderes ver o mar que amavas, não mais poderes ver o teu bisneto a crescer...
Não te apoquentes, avô, daqui a nada já passou, daqui a nada é um pesadelo, daqui a pouco o teu peso neste banco, os teus olhos a engolirem, honestos e bondosos, as roseiras em flor.
No inicio, se quiseres, enquanto estiveres mais fraco, eu pego na tua mão e levo-te à praia, descalço-te os sapatos, tiro-te as meias e ajudo-te a enterrar os pés na areia para que a possas sentir, macia, uma continuação de ti, do teu corpo. Não me importo de ficar ao teu lado, com a tua mão na minha, à espera que a água nos toque, continuação de ti, grande como os teus pensamentos, imensa como a tua vida.
Lembrei-me hoje que morreste, e que quando morremos não voltamos nunca mais, mas eu espero-te. Espero-te sempre.
Avô, o teu bisneto já sabe contar até vinte e dizer o abcedário, e tu nunca ouviste.

2 comentários:

  1. Olá,

    te vi no Benfazeja e quis conhece ro seu blog.
    maravilhoso o seu texto! Fez-me lembrar de minha avó que tambem já se foi e ainda continua tão aqui...

    Beijos

    Leila

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  2. Olá Leila! Muito obrigada pelas palavras. Quando se escreve de dentro acabamos por tocar sempre outras pessoas, porque todos temos "dentro", e dentro desse "dentro" cabem todas as pessoas, as presentes e as que já nos deixaram. Bom relembrá-los e fazer jus às suas memórias* Apareça sempre*

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