04 março 2013

Quatro pais nossos e cinco avés maria

O que falta ao mundo é o silêncio.

O silêncio porque sim, o silêncio do que deve ser deixado por dizer, o silêncio para sarar feridas, o silêncio do próprio silêncio.

Uma nave ausente de ruído é uma coisa maravilhosa de se ver, quando não há padre, não há coro, não há beatas nem beatos, não se escuta o barulho fininho dos pés impacientes ou das mãos nervosas. Quando não se exigem cânticos ou comunhões.

O presbitério pode parecer num repente o sitio certo para largar as lágrimas, olhar no alto a figura de pedra que chora sangue e tem nas mãos cravejados pregos profundos e aquilo não importa para nada. Aquilo não tem mesmo importância nenhuma, não vale nada, nem a talha dourada.

Séculos de culpa e de dor para de repente acabar assim. Cruzadas e mortos, vozes dementes que caem mansas em ouvidos pouco habituados a escutarem a palavra “salvação” e por isso está tudo bem, tudo correto, tudo no sitio onde deve estar.

Há um deus que ninguém viu, um homem que dizem ter sido Santo, nascido por obra e graça de um espírito com traquejo para subir ás saias das senhoras, e depois existem todos os outros santos menores, que figuram bem na fotografia e são deprimentes retratados com a angustia própria dos que sofrem em demasia e mais, porque quem os fez sofrer dessa dor agigantada fomos todos nós, os que vivem, os que já se foram e os que, coitados, ainda estão por vir.

Os sinos vão soando e a vida é um fardo leve de carregar, há quem se responsabilize pela existência da gente, e a gente come e dança e fode e pode tudo isto, porque deus assim o quis, foi por vontade dele e não ao contrário.

- Eu cá tenho fé em Deus, não na igreja!

Solta alguém a caminho da missa. Os sinos badalam com fúria a chamar os fiéis e fica-se confuso. Confuso com isto e com aquilo.

A fé é uma substância perigosa que amaina quem da vida quer só aquilo que não seja escolhido por ele.

Uma nave em silêncio é uma coisa maravilhosa de se ver, ausenta-se de Deus e fica só a igreja, silencioso tumulo dos que ali produziram arte e acredito, se tenham permitido à lágrima caída no presbitério.

O essencial continua invisível, porque o acessório se mascarou de divino e faz pagar com sangue quem, entre o tumulto, se insurge e quer gritar:

- Eu cá tenho fé nas pessoas, não em Deus!

Quatro pais nossos e cinco avés maria. Nem na contrição se permite o silêncio. 

22 fevereiro 2013

“Eu não sou o meu nome” de Pedro Paixão

“Eu não sou o meu nome. Eu sou o teu nome escrito do avesso. Eu sou o meu nome encostado à tua cabeça. O meu nome que foge de mim. O teu nome e o meu nome atados com cordas. O teu nome sou eu quando me debruço por cima do teu ombro. O meu nome a fazer uma pirueta. O meu nome a cair lentamente sobre a tua cama estreita de mulher. O teu nome dentro da minha boca. Sou eu a pedir-te que repitas o meu nome, sussurro a sussurro, letra a letra. Sou eu a dizer o teu nome que trago debaixo da língua. O teu nome no meu sexo estampado. O meu nome no teu sexo estrela. O meu nome é um sexo levantado. O meu nome é uma carícia que me fazes por cima da minha cicatriz. O meu nome é a cicatriz a meio do teu corpo. O meu nome plana por cima das planícies em busca do teu nome. O meu nome cai a pique junto ao teu nome. Nunca digas o meu nome. O meu nome não existe. Não vem em nenhuma página escrita. O meu nome é um cifra escrita a verde ultramarino. Verde ultramarino é a cor de que mais gostam os nossos nomes. O meu nome sobre o teu nome. O teu nome sobre o meu nome. Os nomes muito perto. Os nomes muitos. Os nomes exaltados. O meu nome em cadência lenta. O meu nome é forte como um bicho selvagem. Os nossos nomes percorrem as paisagens como cavalos endoidecidos. Quem diz o meu nome diz amor, qualquer coisa aflita. Quem diz o teu nome deseja ser atingido por um raio, elevado aos céus. O meu nome por dentro do teu nome. O teu nome a pedir perdão por tudo. O meu nome, o teu nome, agarrados por cordas, a cair num precipício. Os nossos nomes são coisas que se comem por dentro. As coisas pelos nossos nomes são aves sagradas. Nome a nome, coisa a coisa. O sol morre dentro do meu nome, na minha boca. O teu nome abriga numa mão fechada o que resta do meu nome. Nomes muito belos. Um nome sem nome. Um nome inefável, inomável. Um nome que ninguém conhece. Só o teu nome sabe o meu nome de cor. O meu nome a subir pelo teu. O teu nome repete o meu nome, nome a nome, sílaba a sílaba. As coisas pelos seus nomes. Os nomes pelas suas coisas. Cada coisa com seu nome, o nome sem fim. Cada nome com sua coisa. O nome do nome no umbigo do mundo.”

Pedro Paixão

05 fevereiro 2013

Diz-me que chegas tarde

Diz-me que vais chegar tarde. Por favor, diz-me que chegas tarde, que ficaste preso numa reunião, que está transito, que foste chamado para um colóquio noutra cidade e te vais ausentar um par de dias.
Já não tenho paciência para te fazer o jantar, para te passar as camisas ou elevar-te o ego. Quando me perguntas se tenho um amante digo-te sempre que não, e que outra coisa te poderia dizer? Não tenho, antes tivesse, que isto tudo era muito mais simples de resolver: arrumava os tarecos, passava umas tardes de sexo louco numa pensão barata, tinha orgasmos como os que já nem sei a que sentem, sentia aquela adrenalina de quando se faz alguma coisa que já não se deve fazer, porque já não é idade, porque o tempo passou e o corpo se cansou. Assim como as coisas andam, nem isso!
Com as minhas amigas aprendi a desejar que tu, e não eu, tenhas uma amante, quando lhes pergunto se acham que se pode dar o caso respondem-se espantadíssimas:
- Oh Carolina, havia lá agora o Jorge de ter uma amante! Àquele homem só lhe falta estender-te um tapete vermelho e beijar cada metro por onde passem os teus pés!
e riem-se muito. Riem-se de mim, e de ti, e da inveja que sentem de nós. O que me apetece é dizer-lhes que eu não quero tapete nenhum, que me enervam já os teus carinhos, os teus beijos apertados, os abraços durante a noite, a tua voz a dizeres que me amas como da primeira vez.
Ai Jorge, que eu sou tão má para ti, como é que só tu é que não vês isso? Como é que não entendes que o meu amor já se foi com os anos e que te tenho uma raiva profunda por me teres roubado a juventude, os sorrisos, as gargalhadas, mas principalmente por me dedicares essa ternura tão grande. Por te sentir tão triste quando te recuso o toque. Sou uma mulher horrível, mas porque é que tu não arranjas uma amante?
Porque é que não me dizes que vais chegar tarde e nunca mais apareceres, e eu daqui a uns anos a descobrir que fugiste para as Bahamas com uma mulher de voz entaramelada e peito firme, porque é que sabes sempre aquilo que deves oferecer-me pelos anos? Porque raio não perdes esse hábito irritante de me terminares as frases e de saberes a temperatura exata a que gosto de comer a sopa
- Minha querida, nem quente, nem fria, como gostas!
e me despejas um sorriso cheio de mim, cheio de nós e da nossa casa paga, e do nosso carro pago, e das nossas roseiras em flor e sempre impecavelmente tratadas porque nunca te esqueces de, ao sábado, as podares e regares, e de quando em quando me trazeres uma para casa e ma colocares, de forma envergonhada, no colo.
Jorge, meu Jorge, tanto amor que eu tinha por ti, tanta felicidade que eu me lembro de sentir quando te soube meu, a incredulidade de saber que era a mim que querias e nenhuma das outras colegas muito mais bem postas que eu.
Meu Jorge, meu Jorge, meu Jorge, quando dormes quero repetir e repetir estas palavras ao teu ouvido.
Sei que te amo, não duvido disso nem por um instante, porque foste tu amar-me tanto durante tanto tempo? É que se me tinhas tratado menos bem… se ao menos tivesses arranjado uma amante… se não me conhecesses de cor e salteado… se não me tens sufocado a vida inteira como teu amor incondicional, eu tinha aprendido o desamor, tinha chorado e tinha-me revoltado, mas isso tinha-me feito querer ficar. Sou uma besta, Jorge, e amo-te tanto, meu amor.
Promete-me que me vais seguir, promete-me que vais lutar por mim, que me vais pedir para não ir, mas depois deixa-me ir, e quando me deixares ir jura que me vais rejeitar as ligações, que não me vais responder às mensagens, que não me vais abrir a porta de casa, que vais mudar de numero, que me vais fazer sofrer com a tua ausência. Se o fizeres eu volto a amar-te loucamente, volto a querer a tua pele perto da minha, volto a adorar as rosas que pousas timidamente no meu colo.
Promete-me uma história de amor, Jorge, das reais, das do dia-a-dia, promete-me que me amas como deve ser, como manda a lei, com lágrimas e sangue e suor à mistura. Promete-me Jorge, promete-me.

04 fevereiro 2013

Cerastoderma edule

És importante. Não, espera, não acenes e digas só que sim, quero que leias isto até que te explodam estas palavras das veias. És importante, e isto é coisa que uma pessoa passam uns anos em cima dos outros e esquece-se de dizer, de repetir, e é verdade que existem palavras que devem ser repetidas várias vezes, principalmente estas, as que uma pessoa mais se esquece de dizer, e as que uma pessoa mais depressa se esquecer de que é.

És importante para mim, sê-lo-ás certamente para outras almas, mas aqui aquilo que eu quero que fique claro é que és importante para mim. Não importante como uma coisa da qual se sente muita falta e que se nos é roubado o ar quando não está presente. Importante como uma pessoa que sabemos fazer do mundo um sitio que mais e mais se pode aproximar daquilo que queremos que seja, importante como alguém que eu sei sentir as coisas no lado certo.

Não sei se algum dia vais ler estas letras (secretamente sei que sim e é por isso que continuo), mas tenho medo que se não as leres não o saibas e por algum motivo que me ultrapassa é-me absurdamente importante que saibas que é isto,no fim das contas feitas, que sinto por ti: uma importância terna e meiga. Não me faltas, não tenho qualquer necessidade de te tocar ou de olhar fundo nos teus olhos, mas quero egoistamente que alguém o faça por mim, e que dentro desses olhos profundos vejas tudo aquilo de és feito, que te permitas a sentir e a aceitar toda essa grandeza de que são feitos os teus sorrisos, e a tua voz, o teu coração e nos dias menos bons, as tuas lágrimas. 

Digo egoistamente porque o prazer de saber que alguém o fará é, antes de ser teu ou desse outro rosto, é meu. Sinto-o meu, inexplicavelmente meu.

Porque não me interessa muito, neste momento que te dedico, que sejas importante para outras pessoas, interessa-me fincar o pé nesta ideia e nesta certeza absoluta de que venham as marés que vierem, as tempestades, as coisas quase-perfeitas, saberás para a eternidade que hoje existiu alguém que te quis dizer coisas simples, sem pretensões ou moralismos, que importas. E a isto não necessito de adicionar mais nenhuma explicação.

Quero que saibas que o vento que sopra lá fora, e o frio que gela os ossos, e que os mares revoltos mais profundos dizem hoje todos a mesma coisa, e que essa coisa é a mais terna memória de ti, espécie portuguesa de um bivalve: Cerastoderma edule.

29 janeiro 2013

Vendaval

Quando a manhã nos traz vendavais por trás da janela fica-se assim, muito quieto, a ver as árvores aflitas numa dança preocupada. Não se chega nunca a compreender se o que pretendem é desprender-se da terra que as aprisiona ou se é o desejo de nela permanecer, serenas, seguras, possantes.

Fica-se assim, meio confuso, meio pasmado. Meio triste, meio encantado. Urgem pavores dentro do corpo, vontades antigas de partir, de descobrir um nome de entre tantos nomes que à força de os repetirmos perdem sentido.

Sabe-se pouco daquilo que a pele significa, se o toque é quente ou gélido, macio ou áspero, suave ou rude, se alguma destas características querem dizer alguma coisa e se essa coisa tem alguma importância.

E enquanto se debate o vendaval lá fora permanecem questões que prometem horas de pandemónio emocional.

As pessoas onde estão? Para onde se viram os seus olhares? Que mãos seguram? Que emoções ainda as incomodam? De que é feito o amor que têm umas pelas outras?

Ao vendaval, tarde ou cedo se junta a tempestade. Chuva grossa que quando cai no alcatrão faz muito mais ruído que uma porta a bater. Reminiscências de pessoas que também elas, ao tombar, fizeram muito mais barulho que um prédio a ruir. E doem essas almas, doem mais e mais de todas as vezes que o rugido do vento não nos deixa descansar. Que nos obriga, apesar de só querermos um pouco de paz, a repor memórias, a racionalizar emoções, a calcular futuros, a deixar de querer.

Deixa-se a tempestade com uma mão pousada no rosto e outra no peito, com pesar por não existir um abraço que pudesse durar o resto das horas que, de tempos a tempos, nos queríamos permitir a dedicar aos que o vendaval levou.

24 janeiro 2013

Nada a ver com amor

E foi então, só então, que a realidade do nosso fim me bateu. E bateu-me, abalroou-me, deixou-me nervosa, o estático momento em que me sinto perdida, mas na verdade sei que acabei de me encontrar.

Chorei a nossa morte como se de uma pessoa se tratasse, revoltei-me com aquilo tudo, com a cama desfeita, com o que ficou para trás, com o que foi dito, com o que foi sonhado, pensado, com os nomes que quisemos escolher, com a voz e com as curtas metragens que me permiti, por opção, a ver repetidamente em frente aos meus olhos.

Não estou certa do motivo pelo qual fiquei assim, tão triste. Acho que o fim, seja ele qual for, e mesmo sabendo da sua inevitabilidade, me dói sempre mais fundo. Não tanto o fim daquilo, mas o ver-me forçada a admitir que aquilo que eu tinha projetado, que aquilo em que eu queria transformar-nos não ia ser possível. E o tempo, a emoção, a intensidade do que foi sentido. Convenço-me e estou agora, depois de nos ter chorado, quase certa de que, por incrível que sejas, foste um produto inventado por mim.

Ver-nos frustrados, assim, depois de tudo aquilo que foi dito e querido, porque o chegou a ser, parte-me o coração em mil pedaços. Que vai ser de nós agora? Eu aqui e tu aí, de volta à casa da partida, sabendo que o tempo nos vai passar por cima e que eventualmente nos vamos tornar em meras lembranças, meio difusas, do que podia ter sido.

É isso, reconheço-o finalmente, é o ver-nos reduzidos a esta insignificância que nenhum de nós merece, porque somos bons, porque temos o coração no sitio certo, porque nos sentimos, em tempos, a casa um do outro. é redutor, limitado, injusto.

Afinal de contas sabíamos que ia ser assim, posso até afirmar que o sabíamos desde o inicio, quando irresponsavelmente e de forma consciente decidimos enfiar-nos no avesso da vida um do outro.

Recuso-me a mentir e a abreviar ainda mais aquilo de que fomos feitos: vais fazer-me falta e embora eu saiba que isso me vai cansar, vais faltar-me, faltar-me, até que finalmente, entre destroços e minutos a martelar no relógio, deixes de o fazer.

17 janeiro 2013

Olhos-lua

Continuo a imaginar como seria a nossa vida, juntos.

Na nossa história morríamos velhinhos, sentados num banco-baloiço de madeira, mão-na-mão, olhar no horizonte e um campo de papoilas de perder de vista.

A nossa história teria começado à muitos anos atrás, atrás da memória que é sequer possível de recordar. A nossa história, meu amor, teria começado numa estrela, num céu imenso e infinito, como nós.

Ao sabermo-nos mortais, capazes de morrer, fugíamos para o sitio mais escondido, mais deserto e mais silencioso do mundo, reinventávamos a ideia do amor, e à imagem dele, construíamos a nossa casa, o nosso campo de papoilas.

Se eu pudesse inventar a nossa história, se sequer existisses, terias em vez da pupila, uma lua, sempre cintilante, cheia, transbordante. As tuas mãos seriam sempre quentes, fortes, dedos finos e compridos que ao toque provocassem turbilhões e tempestades dentro de mim.

Continuo a imaginar a nossa vida, juntos.

Se existisses eu sei que nesta infinita planície, mesmo ao longe, eu te reconheceria, ficava a olhar-te enquanto devagar te aproximavas de mim e sim, serias sempre tu ali, com o sol a rasgar raios atrás de ti, os teus pés tapados por papoilas, os teus olhos-lua a falarem comigo sem que a tua boca se movesse.

Mesmo quando disperso e divago acerca do que seria a nossa vida, se existisses, só me permito à imaginação até certo ponto, depois paro. Sei-te não real, não meu, não olhos-lua, nem toque quente. Quando te sinto próximo e me falas dou alguns passos atrás, para te olhar só mais um pouco, e viro costas, para te esquecer só mais um pouco.

Se fosses real, amor meu, nada disto o seria. Nem estas letras, nem os carros frenéticos, nem o ruído ensurdecedor do burburinho das multidões, nem este teclado onde te escrevo. Se fosses real, este mundo seria outro, um mais capaz, mais certo, melhor.

Esta história só seria possível se todo o amor do mundo fosse possível. Se fosse possível, enfim, que o amor fosse tudo o que é possível.