Desde que, acidentalmente, viemos morar para o mesmo prédio e sem darmos por isso chocamos no corredor do 4ºandar,
(latas de atum, papel higienico, pasta dos dentes, tomates, batatas e se bem me recordo, um pacote de arroz, tudo a voar pelo ar)
que nunca mais fui capaz de tirar a vista de cima dela. Talvez seja por ser homem e ela uma mulher, podem culpar as hormonas, os livros, os filmes, a casualidade ou o seu gosto impecável para musica. Seja como e o que for, que desde esse momento que revejo muitas vezes na cabeça como instantes congelados, ou em camara-lenta, aproximando-nos vagarosamente do momento em que embatemos um no outro e ficou tudo aos saltos corredor fora, até as mercearias...até o meu coração.
O que ela tinha, infelizmente, era uma tendencia horrivel para querer as coisas pelos motivos errados. Quis um gato, não para lhe fazer companhia, mas para lhe matar as moscas e insectos da casa. Quis um guarda-chuva às bolinhas pretas com fundo vermelho, nao para, lá está, a guardar da chuva, mas para levar em longos passeios no pico do Verão avenida fora, qual Lolita. Depois quis comprar um televisor novo, não para o ligar, só para o ter ali, dizia que era reconfortante saber que se chegasse o dia em que sentisse a solidão insuportavel, teria o equipamento necessario para a combater.
Enganava-se muito, é certo.
O gato só queria dormir, o guarda-chuva fazia efeito estufa e rapidamente foi enconstado a um canto e no fundo, ela sempre soube que a televisão não cura a solidão, agudiza-a.
Mas o tanto que eu gostava dela. Seriam os olhos dela, sempre a sorrir. A boca, sempre a dizer aquilo que a cabeça pensava independentemente de correr serios riscos de passar por louca. O corpo esguio que a guiava sempre com o cabelo apanhado no cimo da nuca a baloiçar nas costas.
Houve um dia que me disse que queria morrer, e eu, cobarde, não fui capaz de lhe dizer nada. Encolhi os ombros e puxei um cigarro do maço pousado na mesa do café.
E ela a repetir: Quero morrer, ouviste?
E eu já sem ouvir nada, a não querer ouvir nada, a saber que não havia motivo, ou que se o houvesse, como de resto já ela me tinha habituado, seria o motivo errado.
Nessa noite houve muito barulho, muito ruido a vir do apartamento dela, paredes meias com o meu. Chegou muito tarde, já a madrugada se transformava em manhã e um estrondo no corredor. Estupido, espreitei no buraquinho da porta e ela ali caida no chão a rir-se muito alto, enrolada com um tipo qualquer que tinha mesmo ar de quem só a queria para a foder. Que poderia saber ele do seu sorriso, dos seus cabelos, do seu andar, das coisas que aspirava ter ou ser, ou querer?
O barulho prolongou-se durante um par de horas. Gemidos entrecortados e respirações ofegantes que eu não conseguia perceber se eram dele ou dela,
(e que importa isso?)
coisas a partirem-se e de novo o riso dela, muito alto, tão completamente embriagado daquilo que ela achava que era o que queria, e mais uma vez a enganar-se tanto, a rebaixar-se tanto, a deixar-se usar tanto.
No dia seguinte, à hora do jantar, apareceu-me em casa com um ar muito envergonhado. Os olhos tinham grandes papos escuros e os olhos meio vidrados ou fechados ou lá o que era aquilo.
- Desculpa o barulho hoje de manhã.
e depois a soltar um risinho abafado, a parecer uma miudita pequena, infantil, insignificante, desinteressante e tão ridiculamente oca, tudo aquilo que ela não era... e mais uma vez, pelos motivos errados.
E eu a zangar-me muito com ela, a chamar-lhe puta e cabra e criança, a atiçar-lhe o coiro, a humilhá-la, a querer que ela se revoltasse muito comigo, que me encostasse à parede e me dissesse para me meter na minha vida, e que me dissesse o quão boa tinha sido a foda daquela manhã, e que eu era um sacana desgraçado por não lhe ter dado ouvidos quando ela insistiu comigo que queria morrer, que eu era um monte de merda por não compreender que os motivos dela podiam ser os errados, mas que eram os dela, o que era mais do que eu tinha, que nem sequer os tinha, nem errados nem certos.
Sim, isto era o que ela devia ter feito. Ao invés disso escondeu-se timidamente entre as palmas das mãos, chorou baixinho e repetiu muitas vezes a palavra "desculpa", enquanto eu, o sacana, lhe roubava os motivos e a reduzia a uma insignificancia que ela não merecia.
No dia seguinte ela não apareceu, nem no outro, nem no outro depois desse...o dia seguinte foram todos os dias seguintes que se atropelam em catadupa até hoje, 7 anos depois, a escrevo e lhe quero dizer, esteja ela onde estiver, que eu fui um monte de merda, um sacana, um pulha, um crapula, mas que fui todas essas coisas e mais outra qualquer que a amava de perdição, e que até hoje se pergunta, continuamente, quem era ele para lhe julgar os motivos?
O crápula que a amava pelos motivos errados.
Numa amálgama de pessoas comuns, de coisas que se sentem e se querem. Numa fúria e emoção que contorce as visceras e se deixa levar por só mais um pouquinho deste lugar bonito que é a vida, as personagens rendem-se a pequenas evidências, coisas subtis que fazem de nós Gente com Gente Dentro. É um ponto num emaranhado de contos que contam, sem pretensões ou julgamentos, a matéria que tece a realidade, numas vezes crua, dura e amarga, noutras inocente, cuidada, emotiva.
27 setembro 2011
23 setembro 2011
Iniciar uma guerra ou O dilema dos Srs das Grandes Potencias Mundiais
hoje estava capaz de iniciar uma guerra. uma qualquer, cheia de importancia, pontos de vista revolucionarios e reinvindicações bem argumentadas, ou então não. Ou então uma guerra sem fundamento nenhum, só porque sim, só porque o Sol se vai esconder e as folhas vão começar a cair que nem tordos e a encher os passeios de tapetes crocantes que fazem "crsh-crsh" quando passamos.
não consigo decidir se a guerra seria fria ou quente, se teria morteiros ou cravos, se existiria sangue arrebanhado ou recibos verdes a voar pelo ar. não sei sequer se queria que fosse uma coisa organizada, com cartazes e megafones, ou uma coisa solitária, só eu no meio da praça do rossio a repetir baixinho de mim para mim: Hoje começou a guerra!
gostava de envergar orgulhosamente uma camisola do PC, ou vestia as calças de ganga mais desbotadas e rasgadas e uma qualquer t-shirt básica enfiada a pressa entre os braços? não sei. mas julgo que seria a mesma coisa, ou não, e então teria um problema entre mãos.
tenho a certeza que hoje acordei com esta sede diabólica de iniciar uma guerra. não estou segura de como isto foi acontecer, mas estou quase certa que foram os pratos todos da cozinha que levava empilhados no tabuleiro e que se estatelaram no chão sem qualquer aviso, e me deixaram o cerebro e a alma assim, em polvorosa. terão sido as noticias, cada vez mais deprimentes? ou o café que bebi, paguei e estava queimado? caramba, que dilemas estes...
não compreendo como podem os Srs das Grandes Potencias Mundiais declarar guerras assim, por dá cá aquela palha, isto é complicado de se decidir. não bastam as pessoas envolvidas, ainda há que pensar nas armas, no local, nas baixas, na vestimenta, nos mantimentos, na duração! credo...a duração!
como se decide quanto tempo merece alguém ver a luz do sol? quantos abraços da familia merece aquela criança antes de ser levada para o cu do mundo (na melhor das hipoteses)? quanto tiros se hão-de disparar até que se chegue à conta certa? quantas vidas e durante quanto tempo as havemos de torturar? como se resolvem as questões traumaticas, as casas em chamas, as ruas escavacadas, as lágrimas estendidas como cuecas no estendal no roupa, os braços quebrados e os corações esquartejados?
são questões que a mim, não me assistem. não as entendo. não as visualizo ou foco.
aqui, na minha casinha a beira mar plantada, debato-me com esta coisa de iniciar uma guerra e todas as burocracias que a envolve, e simplesmente não consigo, passa para lá do aceitavel, do imaginavel.
aqui está quentinho, sabem? acabei de comer uma maravilhosa refeição que vi o Jamie Oliver fazer na SicMulher, e banqueteei-me com uma torta de frutos silvestres logo a seguir. tive ainda o prazer desmesurado de me pespegar à janela a fumar um cigarro e para culminar, li 3 histórias ao meu filho e adormeci-o com festas no cabelo. no final ele ainda me disse: gosto muito de ti, mãe!, imaginem-me esta loucura!!
ando agora ás voltas com a minha mente tresloucada a pensar na minha guerra, aquela que eu queria tanto iniciar hoje. que me perseguiu os pensamentos todo o dia. que me revolveu as visceras, que tantos dilemas e dores de cabeça me causou, e ufa!, que canseira!
sim, é de facto fácil e simples pensar nisso, julgar que temos todas as justificações, todas as ideias feitas no lugar, todos os passos estrategicamente planeados.
o dificil...o cobarde...o pedante...o idiota e tão brutalmente ofensivo, é julgar que a podemos levar adiante com o nariz apontado para o céu, para todos aqueles que a sofreram na pele, que a rasgaram e arrancaram das suas próprias casas e familias, enquanto nós, os "Srs das Grandes Potencias Mundiais" estamos confortavelmente sentados no sofá a ver a Oprah e o Dr.Phil, o Biggest Loser e os 30 minutos com Jamie Oliver, com os nossos filhos, amigos e restante familia a dormir profundamente no quarto ou casa ao lado, e julgamo-nos em pleno direito a decidir quanto vale a vida humana.
"the answer my friend, is blowing in the wind..."
não consigo decidir se a guerra seria fria ou quente, se teria morteiros ou cravos, se existiria sangue arrebanhado ou recibos verdes a voar pelo ar. não sei sequer se queria que fosse uma coisa organizada, com cartazes e megafones, ou uma coisa solitária, só eu no meio da praça do rossio a repetir baixinho de mim para mim: Hoje começou a guerra!
gostava de envergar orgulhosamente uma camisola do PC, ou vestia as calças de ganga mais desbotadas e rasgadas e uma qualquer t-shirt básica enfiada a pressa entre os braços? não sei. mas julgo que seria a mesma coisa, ou não, e então teria um problema entre mãos.
tenho a certeza que hoje acordei com esta sede diabólica de iniciar uma guerra. não estou segura de como isto foi acontecer, mas estou quase certa que foram os pratos todos da cozinha que levava empilhados no tabuleiro e que se estatelaram no chão sem qualquer aviso, e me deixaram o cerebro e a alma assim, em polvorosa. terão sido as noticias, cada vez mais deprimentes? ou o café que bebi, paguei e estava queimado? caramba, que dilemas estes...
não compreendo como podem os Srs das Grandes Potencias Mundiais declarar guerras assim, por dá cá aquela palha, isto é complicado de se decidir. não bastam as pessoas envolvidas, ainda há que pensar nas armas, no local, nas baixas, na vestimenta, nos mantimentos, na duração! credo...a duração!
como se decide quanto tempo merece alguém ver a luz do sol? quantos abraços da familia merece aquela criança antes de ser levada para o cu do mundo (na melhor das hipoteses)? quanto tiros se hão-de disparar até que se chegue à conta certa? quantas vidas e durante quanto tempo as havemos de torturar? como se resolvem as questões traumaticas, as casas em chamas, as ruas escavacadas, as lágrimas estendidas como cuecas no estendal no roupa, os braços quebrados e os corações esquartejados?
são questões que a mim, não me assistem. não as entendo. não as visualizo ou foco.
aqui, na minha casinha a beira mar plantada, debato-me com esta coisa de iniciar uma guerra e todas as burocracias que a envolve, e simplesmente não consigo, passa para lá do aceitavel, do imaginavel.
aqui está quentinho, sabem? acabei de comer uma maravilhosa refeição que vi o Jamie Oliver fazer na SicMulher, e banqueteei-me com uma torta de frutos silvestres logo a seguir. tive ainda o prazer desmesurado de me pespegar à janela a fumar um cigarro e para culminar, li 3 histórias ao meu filho e adormeci-o com festas no cabelo. no final ele ainda me disse: gosto muito de ti, mãe!, imaginem-me esta loucura!!
ando agora ás voltas com a minha mente tresloucada a pensar na minha guerra, aquela que eu queria tanto iniciar hoje. que me perseguiu os pensamentos todo o dia. que me revolveu as visceras, que tantos dilemas e dores de cabeça me causou, e ufa!, que canseira!
sim, é de facto fácil e simples pensar nisso, julgar que temos todas as justificações, todas as ideias feitas no lugar, todos os passos estrategicamente planeados.
o dificil...o cobarde...o pedante...o idiota e tão brutalmente ofensivo, é julgar que a podemos levar adiante com o nariz apontado para o céu, para todos aqueles que a sofreram na pele, que a rasgaram e arrancaram das suas próprias casas e familias, enquanto nós, os "Srs das Grandes Potencias Mundiais" estamos confortavelmente sentados no sofá a ver a Oprah e o Dr.Phil, o Biggest Loser e os 30 minutos com Jamie Oliver, com os nossos filhos, amigos e restante familia a dormir profundamente no quarto ou casa ao lado, e julgamo-nos em pleno direito a decidir quanto vale a vida humana.
"the answer my friend, is blowing in the wind..."
22 setembro 2011
Pessoas novas ou Uma no cravo e outra na ferradura
Detesto conhecer pessoas novas. Fica sempre uma centelha do que podia ser, do que poderá ser aquela pessoa, do que pode ter para me dar e o que terei eu para lhe oferecer a ela.
Na maioria das vezes acabo sempre por ficar com a memoria delas presa na mente e construo-lhes quase de modo instantâneo uma personalidade. Quero-as boas, honestas, simples e mágicas. Quero-as com cicatrizes e melancolias escondidas. Quero-as com histórias para contar, com amarguras e defeitos. Com vontade de mudar o mundo. Com mistérios e interesses. E detesto conhecê-las porque que na realidade as quero mais ou menos à minha imagem, quero que vejam o mundo com os mesmos olhos que eu. Que se comovam muito com os velhinhos, que gostem da solidão, que queiram escrutinar o que é isto de viver, de sentir, de querer. E a maioria das pessoas não quer nada disso, quer as suas próprias dores e comoções, sejam elas um filme lamechas ou um cachorro acabado de nascer.
Quero conhece-las, afundar-me no que têm dentro delas e entender como é ser assim, alguém que não eu, que não sabe o mesmo que eu, que sente as coisas de modo diferente, que ás tantas tem tanto mais que eu para oferecer, e eu quase sempre sem ser capaz de condensar dentro de mim o que tenho, e sem compreender o mistério das correntes que elas colocam nos seus próprios pulsos. Quero todas as pessoas livres, quero que compreendam que dentro das suas auto suficiências existe uma necessidade extrema de estar e ser noutro sitio, mais pacifico, mais bonito, mais nosso.
Acabo sempre a preocupar-me demais. A esperar demais. A sentar-me na sombra á espera de as ver chegar.
Detesto conhecer pessoas novas porque na maioria das vezes elas desiludem-me, não são nem um pouco daquilo que eu esperava que fossem e falam com pedras dentro da boca, com punhados de terra nas mãos e com jogos mesquinhos no cérebro, incapazes de ver para lá do óbvio, para lá do sexo ou do interesse em ter alguém com quem beber copos e dizer coisas que no fundo não lhes interessa três pepinos.
Procuro-lhes a essência com uma antecedência que não compreendem, acredito na bondade das suas palavras e no grau de sorrisos de que são capazes.
Não sei ou esqueci-me de como se joga ao gato e ao rato e cada vez compreendo menos a sua finalidade. Eu não preciso de ninguém que me rejeite continuamente para querer estar mais com ela, não preciso que me coloquem uma no cravo e outra na ferradura para as querer mais perto, não quero ter que esperar um tempo politicamente correcto para lhes ligar. Quero andar na rua e ver um homem sentado nas escadas a fazer caricaturas e achar que aquela pessoa em específico ia adorar ver aquilo e conversar com aquela pessoa, e saber que lhe posso dizer exactamente isso, com esta naturalidade, e mesma com que acordo e lavo os dentes, a mesma com que passo naquela rua e me lembro daquela pessoa.
Cada vez gosto menos de conhecer pessoas novas porque acabo genuinamente por gostar delas, e é cansativo gostar das pessoas. Não é que eu não goste, gosto muito, mas há que ver, gostar de alguém de um modo honesto dá trabalho, exige mais de nós do que aquilo que às vezes podemos dar, e depois elas ficam cá dentro algum tempo e não querem sair nem por mais uma, ou duas ou três.
E depois vem o cravo, e no dia seguinte a ferradura, e nunca sabemos se o que vem na semana a seguir é um ou outro e descortinar essas coisas provoca uma exaustão ridícula, daquelas que nos deixa a pensar, será mesmo assim tão bom conhecer pessoas novas, quando na maioria das vezes elas aparecem e depois esfumam-se no ar, deixando a ferradura pendurada na porta e um vaso de cravos pespegado á entrada da nossa vida?
Na maioria das vezes acabo sempre por ficar com a memoria delas presa na mente e construo-lhes quase de modo instantâneo uma personalidade. Quero-as boas, honestas, simples e mágicas. Quero-as com cicatrizes e melancolias escondidas. Quero-as com histórias para contar, com amarguras e defeitos. Com vontade de mudar o mundo. Com mistérios e interesses. E detesto conhecê-las porque que na realidade as quero mais ou menos à minha imagem, quero que vejam o mundo com os mesmos olhos que eu. Que se comovam muito com os velhinhos, que gostem da solidão, que queiram escrutinar o que é isto de viver, de sentir, de querer. E a maioria das pessoas não quer nada disso, quer as suas próprias dores e comoções, sejam elas um filme lamechas ou um cachorro acabado de nascer.
Quero conhece-las, afundar-me no que têm dentro delas e entender como é ser assim, alguém que não eu, que não sabe o mesmo que eu, que sente as coisas de modo diferente, que ás tantas tem tanto mais que eu para oferecer, e eu quase sempre sem ser capaz de condensar dentro de mim o que tenho, e sem compreender o mistério das correntes que elas colocam nos seus próprios pulsos. Quero todas as pessoas livres, quero que compreendam que dentro das suas auto suficiências existe uma necessidade extrema de estar e ser noutro sitio, mais pacifico, mais bonito, mais nosso.
Acabo sempre a preocupar-me demais. A esperar demais. A sentar-me na sombra á espera de as ver chegar.
Detesto conhecer pessoas novas porque na maioria das vezes elas desiludem-me, não são nem um pouco daquilo que eu esperava que fossem e falam com pedras dentro da boca, com punhados de terra nas mãos e com jogos mesquinhos no cérebro, incapazes de ver para lá do óbvio, para lá do sexo ou do interesse em ter alguém com quem beber copos e dizer coisas que no fundo não lhes interessa três pepinos.
Procuro-lhes a essência com uma antecedência que não compreendem, acredito na bondade das suas palavras e no grau de sorrisos de que são capazes.
Não sei ou esqueci-me de como se joga ao gato e ao rato e cada vez compreendo menos a sua finalidade. Eu não preciso de ninguém que me rejeite continuamente para querer estar mais com ela, não preciso que me coloquem uma no cravo e outra na ferradura para as querer mais perto, não quero ter que esperar um tempo politicamente correcto para lhes ligar. Quero andar na rua e ver um homem sentado nas escadas a fazer caricaturas e achar que aquela pessoa em específico ia adorar ver aquilo e conversar com aquela pessoa, e saber que lhe posso dizer exactamente isso, com esta naturalidade, e mesma com que acordo e lavo os dentes, a mesma com que passo naquela rua e me lembro daquela pessoa.
Cada vez gosto menos de conhecer pessoas novas porque acabo genuinamente por gostar delas, e é cansativo gostar das pessoas. Não é que eu não goste, gosto muito, mas há que ver, gostar de alguém de um modo honesto dá trabalho, exige mais de nós do que aquilo que às vezes podemos dar, e depois elas ficam cá dentro algum tempo e não querem sair nem por mais uma, ou duas ou três.
E depois vem o cravo, e no dia seguinte a ferradura, e nunca sabemos se o que vem na semana a seguir é um ou outro e descortinar essas coisas provoca uma exaustão ridícula, daquelas que nos deixa a pensar, será mesmo assim tão bom conhecer pessoas novas, quando na maioria das vezes elas aparecem e depois esfumam-se no ar, deixando a ferradura pendurada na porta e um vaso de cravos pespegado á entrada da nossa vida?
17 setembro 2011
Alvaro de Campos
"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?
Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possiblidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó princípes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde há gente no mundo?
Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."
14 setembro 2011
Pessoas que mordem
Eu já sabia que ia ficar assim, meia perdida, meia sem saber para que lado me hei-de virar, sem saber se o que sinto são borboletas ou morcegos e se o que vejo quando olho para ti é o antes ou o agora.
Eu já sabia e sempre hei-de saber, há-de ser sempre assim, esta duvida, esta incerteza, sem saber o que é isso que vejo jorrar dos teus olhos.
Aliás, sempre soube que existem pessoas que nos mordem, nunca pensei que tu viesses a ser uma delas porque sempre julguei que depois do antes a coisa ficava arrumada. E ficou.
Mas quando apareces assim, tão diferente mas em tantas coisas igual, fico desarmada e quero com força que o mundo gire ao contrário e que possa regressar àquelas coisas que eu não sei o que são mas garanto-te, mordem-me e mordem-me tanto que já não sei como estancar e fazer parar esta nausea, este vómito, esta tontura.
Hei-de saber o que é a viagem sem ti, até lá vou ter que me resignar com os dentes que vais deixando cravados na minha existencia.
Eu já sabia e sempre hei-de saber, há-de ser sempre assim, esta duvida, esta incerteza, sem saber o que é isso que vejo jorrar dos teus olhos.
Aliás, sempre soube que existem pessoas que nos mordem, nunca pensei que tu viesses a ser uma delas porque sempre julguei que depois do antes a coisa ficava arrumada. E ficou.
Mas quando apareces assim, tão diferente mas em tantas coisas igual, fico desarmada e quero com força que o mundo gire ao contrário e que possa regressar àquelas coisas que eu não sei o que são mas garanto-te, mordem-me e mordem-me tanto que já não sei como estancar e fazer parar esta nausea, este vómito, esta tontura.
Hei-de saber o que é a viagem sem ti, até lá vou ter que me resignar com os dentes que vais deixando cravados na minha existencia.
12 setembro 2011
14 de Fevereiro ou O desespero de se ser bipolar
No dia 14 de Fevereiro ela acordou tranquila, tomou banho, vestiu-se. Preparou-se para mais um dia.
Enquanto tomava banho olhou para o corpo despido e quis rasgá-lo, apagá-lo, quebrá-lo. Quis uma raiva tremenda contra o que tinha dentro dele e que implorava para ser libertado. Quis um sitio para esconder a alma, protegê-la dos estilhaços da carne. Sabe que se sentou na banheira a sentir a agua a escaldar a queimar a pele, e sabia que já não tinha lágrimas. Quando o telefone tocou foi obrigada a regressar, a secar o corpo e vestir, havia vida lá fora e reclamavam-lhe a presença urgente num sítio qualquer onde não queria estar. Olhou-se longamente no espelho que a perscrutava, julgava, criticava, quis parti-lo, mas não havia tempo. Praticou o seu melhor sorriso, que nunca é o mais sincero, e quando julgou estar convenientemente preparada para representar o seu papel fechou a porta e chamou o elevador.
No elevador outro espelho seguiu-a, dizia-lhe coisas que não compreendia, apontava-lhe um dedo e chamava-a de fraca, de imprestável, de inútil, de feia, de tão totalmente e irreparavelmente incompleta. Respirou fundo outra vez, espetou furiosamente um dedo no olho para resgatar uma lágrima que queria saltar. Não sabia se vergonha, se medo, se desistência, se desespero, sabia que era normal… tão normal quanto qualquer episodio bipolar o possa ser para um bipolar. Por isso conteve-se, ensaiou e saiu, aquela viagem no elevador junto aos botões com números e Braille, com um espelho assustador como companhia, tinha sido longa, demasiado longa para percorrer os escassos 5 andares que a separavam da rua.
Almoçou devagar, divagou, falou sobre coisas que não lhe interessavam nem um pouco, foi uma boa actriz, tão boa quanto o havia sido a vida inteira, mas aquele peso sentia-o tornar-se insuportável. Toneladas de chumbo sobre as pernas, sobre as costas, e sentia-se arquear, definhar na luta constante que não queria ou podia continuar a alimentar. O corpo permanecia estranho, indigno ao toque, preso a qualquer coisa que não queria que fosse sua, mas que o era, sempre havia sido, e não podia fugir, correr. Fingir costumava resultar, mas hoje tudo era demasiado negro, não havia saída e a respiração começou a faltar. O peito pulava dentro, batia contra os ossos como um martelo, doía-a mais fundo, aplacava-lhe o discernimento.
No regresso a casa sabe que chegou a pedir ajuda, que aquilo tudo estava demasiado errado, que talvez falar ajudasse, que aquele dia podia ter um desfecho diferente, tinha que ter um desfecho diferente. A incompreensão, desconhecimento, ignorância ou medo foram incapazes de servir um bom propósito, afinal de contas… em boa verdade, como se lida com uma coisa destas, como ela, como aquele imbróglio de coisas feias, grotescas e monstruosas que lhe turvavam a vista e a impediam de continuar podia ter alguma ponta por onde pegar, por onde se começa quando o fim está demasiado próximo, quando o fim parece ser o único caminho a percorrer?
Quando regressou ao elevador e novamente o espelho, os números, os 5 andares que não passavam, fraca, inútil, pedante a respiração era uma coisa sumida, difícil, arrancada a ferros, o coração era uma bomba relógio, sentiu-se atirada contra a porta de casa, tentava continuar a inspirar e expirar mas havia qualquer coisa de tremendamente errada consigo, as lágrimas caíam em catadupa e por muito que os dedos percorressem o pequeno espaço em torno dos olhos, elas insistiam, queriam á força libertar-se, reclamar um direito que ela julgava que não tinham.
Por esta altura o pensamento era inconsequente, não existia, era um autómato pronto para fazer fosse o que fosse que acabasse com aquilo o mais rápido possível. Ela recordou os episódios anteriores e quis bater-se, espancar o corpo por lhe fazer novamente aquilo, por a condenar a uma realidade que ela rejeitava, que julgava que não merecia. Ou se calhar merecia, e era certo que os anos de tormentos se sucedessem nesta amálgama de dores e falta de ar que a quebrava e julgava.
Quis distrair-se, a música berrava no computador directamente para dentro dela, arrancava-lhe os movimentos, pisava-a. Milhares de imagens percorriam a mente e novamente o coração a bater, um tambor dentro. Arranhou o peito em busca daquele instrumento inútil que tinha ali e nada encontrava, só um murro atrás do outro, cada vez mais forte, destrutivo, implacável.
Sabe que foi ela quem chegou aos medicamentos, sabe que os tinha guardado propositadamente para uma situação destas, sabia onde estavam e á medida que os ia tirando dos blister de modo atabalhoado, furioso, com as lágrimas a comerem-lhe a visão mas já sem força ou vontade de as secar, engoliu tudo aquilo que lhe apareceu. Queria fazer aquilo parar, queria fazê-lo parar para sempre.
Foi no dia 14 de Fevereiro que deu entrada no hospital. Foi nesse dia que a mãe a encontrou já semi inconsciente ajoelhada no chão em frente ao computador, sem falar, sem mover um músculo que fosse. Soube que foi neste dia que a chamaram, que a levaram de carro até ao hospital, que lhe gritavam para que reagisse, mas ela já não estava ali. Fosse o que fosse que lhe dissessem ela não sabia, não ouvia, não entendia, não se recordava sequer.
Sabia uma única coisa, tinha conseguido que aquilo parasse, por uns momentos toda a merda se evaporou e em anos, toda a sua vida aliás, pôde descansar e antes de ser obrigada pelos médicos e pelo carvão activado a regressar, soube que a sua vida seria sempre assim, a luta entre estar e não estar, querer estar ou não, saber estar ou não, por momentos desistiu, não queria ter que lutar mais contra ela própria, contra o seu próprio corpo, contra as suas próprias emoções, queria descansar, queria dormir, queria por fim, um sitio bonito e tranquilo para morrer.
Regressou, lutou com seguranças do hospital, com um enfermeiro, arrancou os tubos que lhe iam da boca e nariz até ao estômago. Sentiu-se sozinha, perdida, traída. Regressou. Sim, ela regressou, mas com a certeza de que aquilo seria a sua vida (ou a falta dela) sempre. Regressou ou ficou lá para sempre?
É uma questão que há-de consumi-la todos os dias e quando o tambor volta a bater no peito, não há um minuto em que não se lhe venha á memoria a paz que aquele dia por fim lhe ofereceu, uma paz que nunca tinha sentido. Sim, um sitio bonito onde deixar a alma a repousar.
Enquanto tomava banho olhou para o corpo despido e quis rasgá-lo, apagá-lo, quebrá-lo. Quis uma raiva tremenda contra o que tinha dentro dele e que implorava para ser libertado. Quis um sitio para esconder a alma, protegê-la dos estilhaços da carne. Sabe que se sentou na banheira a sentir a agua a escaldar a queimar a pele, e sabia que já não tinha lágrimas. Quando o telefone tocou foi obrigada a regressar, a secar o corpo e vestir, havia vida lá fora e reclamavam-lhe a presença urgente num sítio qualquer onde não queria estar. Olhou-se longamente no espelho que a perscrutava, julgava, criticava, quis parti-lo, mas não havia tempo. Praticou o seu melhor sorriso, que nunca é o mais sincero, e quando julgou estar convenientemente preparada para representar o seu papel fechou a porta e chamou o elevador.
No elevador outro espelho seguiu-a, dizia-lhe coisas que não compreendia, apontava-lhe um dedo e chamava-a de fraca, de imprestável, de inútil, de feia, de tão totalmente e irreparavelmente incompleta. Respirou fundo outra vez, espetou furiosamente um dedo no olho para resgatar uma lágrima que queria saltar. Não sabia se vergonha, se medo, se desistência, se desespero, sabia que era normal… tão normal quanto qualquer episodio bipolar o possa ser para um bipolar. Por isso conteve-se, ensaiou e saiu, aquela viagem no elevador junto aos botões com números e Braille, com um espelho assustador como companhia, tinha sido longa, demasiado longa para percorrer os escassos 5 andares que a separavam da rua.
Almoçou devagar, divagou, falou sobre coisas que não lhe interessavam nem um pouco, foi uma boa actriz, tão boa quanto o havia sido a vida inteira, mas aquele peso sentia-o tornar-se insuportável. Toneladas de chumbo sobre as pernas, sobre as costas, e sentia-se arquear, definhar na luta constante que não queria ou podia continuar a alimentar. O corpo permanecia estranho, indigno ao toque, preso a qualquer coisa que não queria que fosse sua, mas que o era, sempre havia sido, e não podia fugir, correr. Fingir costumava resultar, mas hoje tudo era demasiado negro, não havia saída e a respiração começou a faltar. O peito pulava dentro, batia contra os ossos como um martelo, doía-a mais fundo, aplacava-lhe o discernimento.
No regresso a casa sabe que chegou a pedir ajuda, que aquilo tudo estava demasiado errado, que talvez falar ajudasse, que aquele dia podia ter um desfecho diferente, tinha que ter um desfecho diferente. A incompreensão, desconhecimento, ignorância ou medo foram incapazes de servir um bom propósito, afinal de contas… em boa verdade, como se lida com uma coisa destas, como ela, como aquele imbróglio de coisas feias, grotescas e monstruosas que lhe turvavam a vista e a impediam de continuar podia ter alguma ponta por onde pegar, por onde se começa quando o fim está demasiado próximo, quando o fim parece ser o único caminho a percorrer?
Quando regressou ao elevador e novamente o espelho, os números, os 5 andares que não passavam, fraca, inútil, pedante a respiração era uma coisa sumida, difícil, arrancada a ferros, o coração era uma bomba relógio, sentiu-se atirada contra a porta de casa, tentava continuar a inspirar e expirar mas havia qualquer coisa de tremendamente errada consigo, as lágrimas caíam em catadupa e por muito que os dedos percorressem o pequeno espaço em torno dos olhos, elas insistiam, queriam á força libertar-se, reclamar um direito que ela julgava que não tinham.
Por esta altura o pensamento era inconsequente, não existia, era um autómato pronto para fazer fosse o que fosse que acabasse com aquilo o mais rápido possível. Ela recordou os episódios anteriores e quis bater-se, espancar o corpo por lhe fazer novamente aquilo, por a condenar a uma realidade que ela rejeitava, que julgava que não merecia. Ou se calhar merecia, e era certo que os anos de tormentos se sucedessem nesta amálgama de dores e falta de ar que a quebrava e julgava.
Quis distrair-se, a música berrava no computador directamente para dentro dela, arrancava-lhe os movimentos, pisava-a. Milhares de imagens percorriam a mente e novamente o coração a bater, um tambor dentro. Arranhou o peito em busca daquele instrumento inútil que tinha ali e nada encontrava, só um murro atrás do outro, cada vez mais forte, destrutivo, implacável.
Sabe que foi ela quem chegou aos medicamentos, sabe que os tinha guardado propositadamente para uma situação destas, sabia onde estavam e á medida que os ia tirando dos blister de modo atabalhoado, furioso, com as lágrimas a comerem-lhe a visão mas já sem força ou vontade de as secar, engoliu tudo aquilo que lhe apareceu. Queria fazer aquilo parar, queria fazê-lo parar para sempre.
Foi no dia 14 de Fevereiro que deu entrada no hospital. Foi nesse dia que a mãe a encontrou já semi inconsciente ajoelhada no chão em frente ao computador, sem falar, sem mover um músculo que fosse. Soube que foi neste dia que a chamaram, que a levaram de carro até ao hospital, que lhe gritavam para que reagisse, mas ela já não estava ali. Fosse o que fosse que lhe dissessem ela não sabia, não ouvia, não entendia, não se recordava sequer.
Sabia uma única coisa, tinha conseguido que aquilo parasse, por uns momentos toda a merda se evaporou e em anos, toda a sua vida aliás, pôde descansar e antes de ser obrigada pelos médicos e pelo carvão activado a regressar, soube que a sua vida seria sempre assim, a luta entre estar e não estar, querer estar ou não, saber estar ou não, por momentos desistiu, não queria ter que lutar mais contra ela própria, contra o seu próprio corpo, contra as suas próprias emoções, queria descansar, queria dormir, queria por fim, um sitio bonito e tranquilo para morrer.
Regressou, lutou com seguranças do hospital, com um enfermeiro, arrancou os tubos que lhe iam da boca e nariz até ao estômago. Sentiu-se sozinha, perdida, traída. Regressou. Sim, ela regressou, mas com a certeza de que aquilo seria a sua vida (ou a falta dela) sempre. Regressou ou ficou lá para sempre?
É uma questão que há-de consumi-la todos os dias e quando o tambor volta a bater no peito, não há um minuto em que não se lhe venha á memoria a paz que aquele dia por fim lhe ofereceu, uma paz que nunca tinha sentido. Sim, um sitio bonito onde deixar a alma a repousar.
06 setembro 2011
o sexo é o caos
o sexo é o caos. na maioria das vezes é de uma violência extrema, que chega mesmo a roçar o sadomasoquismo, ainda que os intervenientes não se apercebam desse facto.
é uma vingança quase, uma marcha imperial, um redobrar de esforços para estilhaçar seja o que for que nos tenha feito o coração em cacos tão pequeninos que já não os conseguimos apanhar.
o sexo, por sexo, é animal, é grotesco. pode matar mais por dentro do que a bala de um canhão, é capaz de destruir, de arrebanhar, de sacrificar.
fica muitas vezes a sensação vazia de que se o fez porque tinhamos dentro uma raiva imensa, uma necessidade desumana de explodir, de libertar, de amordaçar o peito e escancarar desejos.
o sexo, quando é só isso mesmo e mais nada, pode curar, pode aumentarnos o ego e elevá-lo a uma altura que se aproxima dos deuses, pode dar-nos a sensação destemida de que o resto que se foda, que vale tudo, que nada vale, ou que tudo se perde quando se pensa descobrir. é um bicho papão, o sexo. um bicho papão que tem abraçado a si o joão pestana, uma vontade de ser mais, de querer mais, de prosseguir, de criar a ilusão de que tudo o resto são tangas e balelas dos filmes, musica e livros.
o sexo pode ser um factor de aumento ou de uma redução tão singular que muitas das vezes perdemos a memória de como efectivamente começou.
mas depois dá-se-lhe a volta e ele faz todo o sentido, afinal que pode ter mais sentido do que ser-se comummente animal?
mas depois há alturas em que as coisas se misturam, em que se deixa o discernimento para outro dia e os sorrisos começam a invadir a nossa cabeça assim, sem mais nem menos. e acabamos sempre com a mesma constatação que mata quase tanto como o sexo em si: é só sexo, então porque tenho estas coisas, palavras, rostos, memórias desconexas e vontades encriptadas a cirandar na minha cabeça? aii, mau maria!
e em boa verdade o final é sempre quase o mesmo, uma pessoa anda ali ás voltas com aquilo na mente durante uns tempos, depois as vontades vão passando e pensamos redescobrir as maravilhas vingadoras do sexo por sexo, julgamos que se arranjarmos em quem despejar este medo e esta confusão com o mesmo método, a coisa há-de ir ao sitio, e depois nada... depois com sorte (azar...sorte...azar...s...a...pim-pu-neta,pitá-pitá-pituxa...) acabamos com a cabeça embrulhada noutro corpo qualquer e juramos a pés juntos que o sexo é caos, é uma mentira, é uma vingança e continuamos estrada fora, com aquele olhar preso nos autocarros, nos cartazes da rua, nas pessoas que nos dizem "bom dia!".
sim... o sexo é o caos, o resto não passa de literatura.
é uma vingança quase, uma marcha imperial, um redobrar de esforços para estilhaçar seja o que for que nos tenha feito o coração em cacos tão pequeninos que já não os conseguimos apanhar.
o sexo, por sexo, é animal, é grotesco. pode matar mais por dentro do que a bala de um canhão, é capaz de destruir, de arrebanhar, de sacrificar.
fica muitas vezes a sensação vazia de que se o fez porque tinhamos dentro uma raiva imensa, uma necessidade desumana de explodir, de libertar, de amordaçar o peito e escancarar desejos.
o sexo, quando é só isso mesmo e mais nada, pode curar, pode aumentarnos o ego e elevá-lo a uma altura que se aproxima dos deuses, pode dar-nos a sensação destemida de que o resto que se foda, que vale tudo, que nada vale, ou que tudo se perde quando se pensa descobrir. é um bicho papão, o sexo. um bicho papão que tem abraçado a si o joão pestana, uma vontade de ser mais, de querer mais, de prosseguir, de criar a ilusão de que tudo o resto são tangas e balelas dos filmes, musica e livros.
o sexo pode ser um factor de aumento ou de uma redução tão singular que muitas das vezes perdemos a memória de como efectivamente começou.
mas depois dá-se-lhe a volta e ele faz todo o sentido, afinal que pode ter mais sentido do que ser-se comummente animal?
mas depois há alturas em que as coisas se misturam, em que se deixa o discernimento para outro dia e os sorrisos começam a invadir a nossa cabeça assim, sem mais nem menos. e acabamos sempre com a mesma constatação que mata quase tanto como o sexo em si: é só sexo, então porque tenho estas coisas, palavras, rostos, memórias desconexas e vontades encriptadas a cirandar na minha cabeça? aii, mau maria!
e em boa verdade o final é sempre quase o mesmo, uma pessoa anda ali ás voltas com aquilo na mente durante uns tempos, depois as vontades vão passando e pensamos redescobrir as maravilhas vingadoras do sexo por sexo, julgamos que se arranjarmos em quem despejar este medo e esta confusão com o mesmo método, a coisa há-de ir ao sitio, e depois nada... depois com sorte (azar...sorte...azar...s...a...pim-pu-neta,pitá-pitá-pituxa...) acabamos com a cabeça embrulhada noutro corpo qualquer e juramos a pés juntos que o sexo é caos, é uma mentira, é uma vingança e continuamos estrada fora, com aquele olhar preso nos autocarros, nos cartazes da rua, nas pessoas que nos dizem "bom dia!".
sim... o sexo é o caos, o resto não passa de literatura.
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