27 setembro 2011

Motivos Errados

Desde que, acidentalmente, viemos morar para o mesmo prédio e sem darmos por isso chocamos no corredor do 4ºandar,
(latas de atum, papel higienico, pasta dos dentes, tomates, batatas e se bem me recordo, um pacote de arroz, tudo a voar pelo ar)
que nunca mais fui capaz de tirar a vista de cima dela. Talvez seja por ser homem e ela uma mulher, podem culpar as hormonas, os livros, os filmes, a casualidade ou o seu gosto impecável para musica. Seja como e o que for, que desde esse momento que revejo muitas vezes na cabeça como instantes congelados, ou em camara-lenta, aproximando-nos vagarosamente do momento em que embatemos um no outro e ficou tudo aos saltos corredor fora, até as mercearias...até o meu coração.
O que ela tinha, infelizmente, era uma tendencia horrivel para querer as coisas pelos motivos errados. Quis um gato, não para lhe fazer companhia, mas para lhe matar as moscas e insectos da casa. Quis um guarda-chuva às bolinhas pretas com fundo vermelho, nao para, lá está, a guardar da chuva, mas para levar em longos passeios no pico do Verão avenida fora, qual Lolita. Depois quis comprar um televisor novo, não para o ligar, só para o ter ali, dizia que era reconfortante saber que se chegasse o dia em que sentisse a solidão insuportavel, teria o equipamento necessario para a combater.
Enganava-se muito, é certo.
O gato só queria dormir, o guarda-chuva fazia efeito estufa e rapidamente foi enconstado a um canto e no fundo, ela sempre soube que a televisão não cura a solidão, agudiza-a.
Mas o tanto que eu gostava dela. Seriam os olhos dela, sempre a sorrir. A boca, sempre a dizer aquilo que a cabeça pensava independentemente de correr serios riscos de passar por louca. O corpo esguio que a guiava sempre com o cabelo apanhado no cimo da nuca a baloiçar nas costas.
Houve um dia que me disse que queria morrer, e eu, cobarde, não fui capaz de lhe dizer nada. Encolhi os ombros e puxei um cigarro do maço pousado na mesa do café.
E ela a repetir: Quero morrer, ouviste?
E eu já sem ouvir nada, a não querer ouvir nada, a saber que não havia motivo, ou que se o houvesse, como de resto já ela me tinha habituado, seria o motivo errado.
Nessa noite houve muito barulho, muito ruido a vir do apartamento dela, paredes meias com o meu. Chegou muito tarde, já a madrugada se transformava em manhã e um estrondo no corredor. Estupido, espreitei no buraquinho da porta e ela ali caida no chão a rir-se muito alto, enrolada com um tipo qualquer que tinha mesmo ar de quem só a queria para a foder. Que poderia saber ele do seu sorriso, dos seus cabelos, do seu andar, das coisas que aspirava ter ou ser, ou querer?
O barulho prolongou-se durante um par de horas. Gemidos entrecortados e respirações ofegantes que eu não conseguia perceber se eram dele ou dela,
(e que importa isso?)
coisas a partirem-se e de novo o riso dela, muito alto, tão completamente embriagado daquilo que ela achava que era o que queria, e mais uma vez a enganar-se tanto, a rebaixar-se tanto, a deixar-se usar tanto.
No dia seguinte, à hora do jantar, apareceu-me em casa com um ar muito envergonhado. Os olhos tinham grandes papos escuros e os olhos meio vidrados ou fechados ou lá o que era aquilo.
- Desculpa o barulho hoje de manhã.
e depois a soltar um risinho abafado, a parecer uma miudita pequena, infantil, insignificante, desinteressante e tão ridiculamente oca, tudo aquilo que ela não era... e mais uma vez, pelos motivos errados.
E eu a zangar-me muito com ela, a chamar-lhe puta e cabra e criança, a atiçar-lhe o coiro, a humilhá-la, a querer que ela se revoltasse muito comigo, que me encostasse à parede e me dissesse para me meter na minha vida, e que me dissesse o quão boa tinha sido a foda daquela manhã, e que eu era um sacana desgraçado por não lhe ter dado ouvidos quando ela insistiu comigo que queria morrer, que eu era um monte de merda por não compreender que os motivos dela podiam ser os errados, mas que eram os dela, o que era mais do que eu tinha, que nem sequer os tinha, nem errados nem certos.
Sim, isto era o que ela devia ter feito. Ao invés disso escondeu-se timidamente entre as palmas das mãos, chorou baixinho e repetiu muitas vezes a palavra "desculpa", enquanto eu, o sacana, lhe roubava os motivos e a reduzia a uma insignificancia que ela não merecia.
No dia seguinte ela não apareceu, nem no outro, nem no outro depois desse...o dia seguinte foram todos os dias seguintes que se atropelam em catadupa até hoje, 7 anos depois, a escrevo e lhe quero dizer, esteja ela onde estiver, que eu fui um monte de merda, um sacana, um pulha, um crapula, mas que fui todas essas coisas e mais outra qualquer que a amava de perdição, e que até hoje se pergunta, continuamente, quem era ele para lhe julgar os motivos?
O crápula que a amava pelos motivos errados.

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