28 outubro 2012

Chuva

É Outono. Outubro, porque está a chover e cheira a terra molhada. Se não fosse a chuva e o cheiro podia ser Primavera, ou outra estação qualquer, mas não. È Outono. Outubro.

Tenho que ir supermercado e não me apetece. Quero ficar sentada a olhar para a janela cheia de gotas que se multiplicam com violência, a ouvir só o barulho da chuva e dos carros que aceleram lá fora. Apetece-me uma hora só disto. De nada. De coisa nenhuma. Pensando bem apetece-me um par de horas, ou mais ainda, ou uma semana inteira. Por mim podia não parar de chover durante o resto do ano, a vida inteira, e eu, feliz, ficava aqui sentada sem mexer um músculo, a esvaziar a cabeça para dentro da água que cai aos potes do céu. Adivinho-a quase tão cheia quanto eu. Tão exausta. Tão revoltada.

Tenho um cansaço enorme nas pernas e não fiz absolutamente nada. Quero dizer, ontem saí, andei muito, conheci um gato pingado cheio de piada e fui para a cama com ele, acordei estremunhada numa casa que não reconheci e corri escadas a baixo depois de lançar um “Bom dia, desculpa estou com pressa, ficaste com o meu numero, não ficaste?” e receber um grunhido que não fui capaz de identificar se significava anuição ou confusão. Não quis saber. Quis fugir. E agora estou aqui, fugitiva. O peso nas pernas pode ter sido de qualquer um dos fatores acima mencionados, incluindo o sexo, que se bem me recordo foi bom, nada de espetacular (afinal de contas não se pode esperar muito de uma queca repentina que veio sabe-se lá de onde e foi parar não sei a que sitio), mas bom.

Sinto-me cansada e deve ser da idade. Mas eu não tenho assim tanta idade, na verdade tenho pouca, 10 mais 10 mais 5 é pouco, mas tenho quase a certeza que o meu cansaço é da idade, se calhar os anos pesam-me no corpo mais do que às outras pessoas. Se calhar sou como os gatos e os cães, que quando têm 10 mais 6 já são idosos, e é uma sorte durarem outros mais 6. Deve ser isso.

Depois disso tudo, do meu desfasamento relativamente a todas as outras pessoas acho que tenho um grave problema relacional, digo, no que respeita precisamente às outras pessoas. Elas cansam-me, todas, sem exceção. Gosto muito de algumas, sei que sinto amor puro por outras, mas fora estas, detesto de um ódio de morte todas as outras. Tenho-lhes pena, ou nojo, ou eu sei lá o quê. Também já pensei que as amo, e é por isso que as detesto, por me fazerem sentir estas coisas por elas. Isto tudo também me cansa.

E depois, por cima (ou par baixo?) dessas pessoas pelas quais nutro algum sentimento mais profundo de forma negativa ou positiva, existem as outras pelas quais sinto uma indiferença extremosa. Bem sei que há alturas em que a indiferença também é um caminho, tão respeitável como qualquer outro, sublinho, mas essa indiferença faz com que incorra de forma constante em vinganças contra mim (ou às outras acima referidas) nestes indivíduos que me são tão indiferentes quanto um molho de alface na secção dos frescos do supermercado (e por falar nisso, não me posso esquecer que tenho de lá ir). Foi o caso do gato pingado da noite passada, eu sei lá às tantas até é uma ótima pessoa, tanto quanto sei pode bem ser o homem da minha vida, mas deitar-me com ele foi tão simples, básico e animal quanto sentir o estomago roncar de fome quando estou horas a mais sem comer. E isto é de um pedantismo atroz. Aquela coisa enfadonha e desesperada de tentar encontrar em todos os rostos que nos olham alguém a quem queremos desejar “boa noite”, quem cuide de nós, de quem queiramos cuidar. Mas depois nunca passa de uma ideia, a ideia da paixão. Perdem piada, consistência. Apesar do desapego já tive, e isto juro a pés juntos, alturas em que me forcei a olhar essas criaturas como humanos, gente com mais gente dentro, como eu, como as pessoas que eu amo, mas que não sabia que ia amar antes de as conhecer, e porque não dar uma oportunidade? Porque não acreditar? Eu sei lá, porque não contornar a ideia e torna-la real? Mas entretanto fica tudo confuso, muito confuso, demasiado confuso. Ninguém quer dar satisfações de coisa nenhuma, ninguém quer ter de provar nada. Isso também deve ser da idade, tenho a sensação que a determinada altura passasse a julgar que já não há nada a provar, que tudo aquilo que tínhamos que mostrar já mostrámos e quem viu, viu, quem não viu, bom, azar, tivesse visto. E seguindo esta ordem de ideias, se essa pessoa não viu, não estava lá, é porque não interessa, e não é agora, depois de tantos frascos partidos no chão, de tantas gotas de chuva a baterem no vidro, que vamos ter de começar novamente e sermos um livro. È cansativo começar a contar a história toda outra vez, e de cada vez de se tem de a recontar, existem mais dias, mais anos, mais acontecimentos que me mudaram e que por isso mudam tudo o resto. Quando começo a pensar nisto, que vou ter de ser menina outra vez, que vou ter de reviver tudo novamente, então perco as forças e apetece-me ficar só assim, quieta, sentada nesta cadeira a ver as gotas da chuva baterem violentamente na vidraça.

Nunca será mais fácil descer as escadas de um prédio a correr para fugir áquilo que deixei pendurado no colchão, mas pelo menos será mais certo que aquela pessoa, aquele corpo que de certeza tem uma alma lá dentro, nunca me pedirá satisfações, nunca me vai questionar os motivos, nunca me vai magoar porque não sabe onde o fazer nem os pontos chaves a pressionar, e em última instancia não, eu também nunca lhe irei infligir nenhum tipo de dor, nunca serei a sua desculpa para que chore ou se entristeça.

Estou cansada e isto deve ser da idade. E de repente, assim só de repente, sinto-me vazia e sozinha. Podia chover para sempre e eu aqui, a ver as gotas baterem como martelos no vidro

(espera, deixou de chover… isto tem de ser reformulado, o que é que bate, afinal de contas?)

Podia chover para sempre e eu aqui, a sentir o medo bater como martelos no peito.

3 comentários:

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  3. Estava a falar apenas de mim. Quando lemos projectamo-nos nas palavras que nos atravessam o caminho. Se calhar não devia ser assim, mas mormalmente é. Tenho andado numa fase demasiado óbvio, sem subtileza, auto-confessional, e mesmo os meus textos andam assim por estes dias.


    Mas não tenho nada que vir aqui acrescentar nada. Outros texto teus estão mesmo bons e deixei lá comentário a dizer que me tocaram. Mas e daí ? /// Se puderes, por favor, apaga os meus comentários. Volto para os blogs que pululam e que não me dizem nada. O teu até até me dizia bastante.

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