03 abril 2012

Se eu chegar a velha

  Quando eu chegar a velha, se lá chegar, quantas pessoas terei conhecido? Com quantas terei falado? A quantas terei contado a minha vida? Quantas terei amado, quantas me terão amado a mim? Quantas casas resistirão? E as estradas, permanecerão as mesmas?
  Se eu chegar a velha terei sobrevivido, tudo aquilo que um dia me fez rogar pragas à vida terá passado, estará no cano debaixo do ralo da banheira. Terei as mãos cheias de gente, de sítios, de sons, de cheiros. Para alguns vou sorrir, outros nem o nome vou lembrar, só que um dia fizeram parte de mim e que viveram dentro do meu peito, encostados áquilo que tinha de precioso.
  Se eu chegar a velha fiquem-me com tudo. Levem-me as recordações, todas, as boas e as más. Abram-me o corpo de par em par, como quem abre uma janela, e vertam-nas para um alguidar verde musgo, daqueles gastos, já cheios de cortes e espigões de plásticos. Pendurem-nas no estendal e deixem-nas livres para voarem numa noite de maior vendaval. Não as retirem da corda por coisa nenhuma, nem por um incendio, nem por uma cheia, um tornado ou um assalto. E se for um assalto deixem que as levem, se algum valor virem nelas, que as vendam numa loja de penhores, ao desbarato, por tuta e meia.
  Queimem a minha roupa, não guardem casacos quentes que podem dar jeito no Inverno, não se esqueçam das minhas calças numa gaveta só porque podem servir para andar por aí. Não usem os meus sapatos, não deixem que eles que já percorreram os meus trilhos, percorram os vossos, deem-lhes  o gosto de terem um fim comigo, de serem finitos e de terem as suas próprias memórias, que elas se enlacem nas minhas, que morram comigo. Queimem-nas, se eu chegar a velha.
  As minhas casas, se as tiver, vendam-nas. Não morem nelas, não me recordem em cada divisão. Não usem os meus talheres. Se eu chegar a velha e morrer, com o tempo, vão recordar-se menos e menos de mim, mas de vez em quando, quando o vento vos trouxer o meu cheiro, quando pegarem nalguma coisa que tenha sido minha, vão lembrar-se, e, se me tiverem amado tanto quanto vos amei, isso vai entristecer-vos. E não há coisa pior que sermos o motivo de dor para alguém que amamos profundamente.
  Se perguntarem por mim digam que fui á pesca, que fui á mercearia, não digam que fui à missa senão percebem logo que lhes querem enfiar o barrete. Usem coisas simples, como flores, fontes e relva. Se mantiverem as coisas simples ninguém vai desconfiar, e isso vai poupar-vos palmadinhas nas costas, abraços pouco sentidos e sorrisos desviados com um encolher de ombros e um “é a vida, temos que ser fortes”.
  Se eu chegar a velha não guardem de mim nada. Se eu chegar a velha, rogo-vos, esqueçam-me.

3 comentários:

  1. Quando, e se, a velha chegares, por muito jovial que me possas parecer, serás "deletada", para que a tristeza não me invada!!!

    Ema

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  2. quando, e se, a velha chegar, saberás, pequena Ema, que a tristeza, o amor, a amizade, e a felicidade andam sempre de mãos dadas, mas que há alturas em que não formam circulos, mas sim linhas que se podem cruzar, eventualmente, no infinito. saberás ainda, Ema, que se tiveres o coração cheio de amor, tudo regressará para te envolver*

    BGil*

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  3. Quando chegares a velha, velhos também estaremos todos nós, pois que ninguém foge a este destino!

    Grande abraço

    Leila

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