10 junho 2011

Falida

Quando fiz dezanove anos decidi que queria ir ver o que o mundo tinha para me oferecer. Fugi de casa numa manhã de Sol, apanhei o autocarro até á estação dos comboios e segui para o destino que tinha a hora de partida mais próxima, Funcheira.
 Deixei recado para os compradores da minha casa, desejei-lhes felicidades debaixo daquele tecto e pedi-lhes que não fizessem muito barulho depois das dez da noite, que a Dona Teresinha (a vizinha do andar de cima) dormia a essa hora. Pedi á imobiliária expressamente que tentasse encontrar uma família simpática, com filhos adolescentes porque quando acordava com algum barulho, a Dona Teresinha descia as escadinhas, pé ante pé, até á minha porta e pedia-me para lhe contar uma história. Sempre mo tinha pedido a mim, gostava que lhe contasse as coisas que ia aprendendo na escola e foi ela quem soube, em primeira mão, da primeira vez que o meu coração ficou tão partidinho que até metia dó. Lembro-me que fomos interrompidas pelo meu pai, que ao ouvir barulho no pátio do prédio aquelas horas tardias, foi lá zangar-se connosco e mandar-nos ás duas para a cama. Eu para o meu quarto cheio de cores e coisas divertidas com que me entreter, e a Dona Teresinha para a casa dela, fria, cinzenta, solitária e com pedaços de tinta a cair das paredes.
Foi a minha primeira amiga, sabem? Não tinha muitos estudos, mas sempre que falava o mundo ficava como que suspenso, porque tinha sempre alguma coisa muito sábia para dizer. Zangava-se comigo quando me espreitava da janela e me via chegar da escola vestida com o meu mailot do ballet e as meias todas rasgadinhas, cheias de buracos de onde se viam as feridas provocadas pela correria do recreio.
 Como á hora que eu chegava ainda não estava ninguém em casa, subia e ia directa para a casa de banho da Dona Teresinha, tomava um banho e quando saía da banheira já cheirava a chocolate quente e bolachinhas acabadas de fazer. Enroscava-me á lareira enquanto, com uma paciência de santa, ela me cosia as meias e me descompunha. Riamo-nos muito, eu e ela. Riamo-nos de quase tudo, até nos rimos num dia em que passei por uma foto daquelas muito antigas a preto e branco onde figurava o seu marido que tinha morrido há uns anos atrás, e me pus a imitar-lhe a pose em frente ao espelho, com um lápis preso entre o lábio e o nariz a fazer de bigode, e uma almofada no estômago a imitar a barriga proeminente do senhor. Quando ela me viu pensei que se ia zangar muito comigo, mas não, riu-se a bandeiras despregadas enquanto me foi contando algumas aventuras e desventuras dos seus anos de menina e moça.
À noite, a Dona Teresinha vinha sempre jantar lá a casa. A minha mãe tinha muito cuidado com o sal e os condimentos, porque não faziam nada bem á Dona Teresinha, e o meu pai sorria muito quando ela punha um pedaço de pão dentro do copo da água para o amolecer, sem nunca se esquecer de me dizer a mim e ao meu irmão que ela só o fazia porque os dentinhos já não tinham tanta força, mas que os nossos sim, e que portanto não admitia faltas de educação a mesa.
Como os meus pais tinham sido os dois criados em orfanatos e não tinham família, a Dona Teresinha era como se fosse a minha avó e nunca faltava á Pascoa, ao Natal e aos nossos aniversários. Tricotava-nos carapins e trazia sempre um pires com bolachas de manteiga, que se acabavam em menos de nada com a razia que eu e o meu irmão lhe dávamos. Éramos, nós os quatro e a Dona Teresinha, o que se chama de uma família normal, feliz, unida. Também nos zangávamos, mas gostávamos tanto uns dos outros que a zanga passava rápido e não tardava a que os sorrisos imperassem outra vez.
Abandonei aquela casa porque, depois da morte dos meus pais e do meu irmão, ficou tão vazia que os meus passos pareciam bombas a rebentar no soalho.
A Dona Teresinha foi muitas vezes lá a casa, mas eu já não tinha mais histórias para lhe contar. Ela bem que ia insistindo comigo. Trazia-me muitas bolachas que ficavam a ganhar bolor na caixa do pão e com o tempo, também ela deixou de aparecer. Ficamos as duas, cada uma no seu canto, eu, na minha casa vazia, sombria, despida e triste, e ela na casinha dela, fria, cinzenta, solitária e com ainda mais pedaços de tinta a cair das paredes.
Foi por isso que decidi fugir e ver que mais tinha o mundo para me oferecer. Vim parar a esta terra abandonada no meio do Alentejo onde todas as velhinhas são Donas Teresinhas, e todas as crianças são o meu irmão. Em todas as senhoras que me sorriem procuro o sorriso da minha mãe, e todos os homens que me dizem “Bom dia, menina!”, podiam perfeitamente ser o meu pai.
Afinal é isto que o mundo tem para me mostrar, uma repetição incansável do que foi, que me dói porque nunca mais vai voltar a ser e eu, que não sou capaz de mexer na herança que me foi deixada, continuo a trabalhar nas hortas das Donas Teresinhas, com quem não sou capaz de falar, porque as histórias esgotaram-se-me, e continuo a dizer aos advogados que me perseguem por causa da herança parada que estou falida. Eles não percebem, pois claro que não percebem, mas eu percebo, e a Dona Teresinha que eu também abandonei percebe, que estou efectivamente e irremediavelmente falida.
Sim, esta foi a frase mais sábia que a Dona Teresinha alguma vez me disse. Na altura não compreendi, não podia, não tinha alma que chegasse para isso. Mas agora, todas as noites em que calço os carapins antes de me ir deitar, repito baixinho, de mim para mim: Falida, estás emocionalmente falida. E sei que a alguns quilómetros de distância, a minha Dona Teresinha, está a repetir exactamente a mesma coisa, encostada á moldura daquele senhor barrigudo e de bigode farfalhudo, que a deixou assim, efectivamente e irremediavelmente falida.

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