Partimos sempre do mesmo ponto, arremessamos sempre a mesma pedra, escondemos sempre os mais cabeludos segredos e, no fim de contas, é tudo poeira.
Por detrás daquela janela vivem-se vidas, amarguram-se saudades, levam-se ao limite forças e paciências. Tudo é uma constante ausência gravada nas paredes despidas de memórias, ou talvez despidas dessa grande matéria, a poeira.
Tudo é sofrimento, amor estrangulado, orgulho ferido.
Todos os dias se arremessam as mesmas pedras e todos os dias recomeça a quotidiana rotina do silêncio imposto assim, por dá cá aquela palha.
A toda a hora se sentem estalos, maldições, violência gratuita para os vizinhos intrometidos. Nem é necessário ligar o televisor, tudo está ali, à mão de semear, à distância de escassos metros, de uma campainha que existe mas na qual já ninguém toca.
No início chamou-se a polícia, a dita autoridade competente para actuar em conformidade com este tipo de situações. Mas diziam os agentes, cuidadosamente fardados e meticulosamente engomados, que era imaginação, que nada de estranho ou anormal se passava daquela porta para dentro.
Revoltaram-se as beatas, fizeram-se manifestações, arremessaram-se “cocktails molotov”, foi chamado o padre da paróquia, escreveram-se cartas ao Primeiro-ministro. Mas da angustiante casa nem um pio se fez soar, nem um gesto de apelo ou agradecimento.
Não se compreendia a ingratidão e maldiziam-se os indivíduos em questão.
O tempo abateu-se sobre os telhados e o Sol pôs-se muitas vezes naquela janela onde se vivem vidas e se amarguram saudades.
Os vizinhos intrometidos perderam a pica do escândalo, que se foi abafando e gradualmente esquecido.
Uma certa noite ouviram-se estrondos, gritos, muitas pedras a serem arremessadas e os cabeludos segredos ‘encarecaram-se’. As beatas saíram das suas casas para espreitarem sorrateiramente o sucedido.
Da porta sempre fechada e da campainha à muito silenciada saiu a mulher com sangue nas mãos, nos olhos, nas pernas e houve quem dissesse que até do peito, rasgado e dilacerado após anos de humilhações á porta fechada.
Avançou cambaleante até ao pátio e parou bem no centro dos olhares atentos que a fulminavam, perplexos.
Disse uma única palavra, que mais simples não podia ser, disparou sobre a sua têmpora direita e deixou-se cair ensanguentando a calçada e os demais que estavam próximos da cena do crime.
A última palavra da mulher cambaleante foi:
“Obrigada.”
Horas depois foi encontrado o corpo do marido, morto, onde estava escrito um bilhete que o seguinte dizia:
“Estou cansada destas danças que faço à nossa volta para ver se sobrevivo e faço o nosso amor valer a pena. Perdoa-me, se disso fores capaz.”
E no verso do bilhete um provérbio de terras distantes:
“Só porque te matei isso não significa que não te ame ou respeite.”
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