26 maio 2012

Pão, pão; queijo, queijo

Eu tenho um filho. Não, isso não interessa para nada, eu tenho um filho. Sim, claro, sou escritora, cronista, letrista, guionista, e nos tempos livres gosto de acreditar que também pinto, canto e danço. Não é nada interessante, eu não sou nada interessante. Sou a coisa mais banal que vais conhecer ao longo da tua vida inteira, tenho órgãos e sangue e ossos e pele, como como toda a gente, fumo muito (o que é um péssimo hábito), apanho autocarros, acordo com o cabelo desgrenhado, tenho ramelas, há dias em que honestamente detesto o meu corpo. Não sou nada interessante.

Não, não me estás a ouvir. Eu tenho um filho. Não posso embebedar-me todos os dias até à quinta casa, não posso ir de férias sempre que me apetece, não posso ficar acordada a ver filmes até ser dia, todos os dias. E esse filho também tem um pai, e esse pai é importante na medida em que tenho um filho dele, uma história infinita da qual não me vou ver livre nos próximos anos. Vou falar com ele muitas vezes, não vamos discutir, porque nós não discutimos. Vou ser amiga dele, amiga a sério, de vez em quando vamos rir-nos muito, também vamos chorar, vamos falar da família um do outro. Nunca mais vamos para a cama um com o outro, isso nunca. Mas ele, taco-a-taco com o meu filho, vai ser um homem que não vai desaparecer da minha vida.

Eu sei, eu sei que gostas de mim. Mas não me estás a ouvir com atenção. Além de ter um filho, de ter um pai do meu filho, também tenho rachas dentro da alma. Penso muito na morte, fumo mais cigarros, tenho insónias, fico acordada até de manhã à janela a ver nada, a ver vazio, a ouvir os carros passarem na estrada. Depois disto tudo há a musica e o silêncio. Eu gosto dos dois, mais que gostar, preciso deles. Tenho dias absolutamente insuportáveis, em que cito muitas vezes

[“Não sentir ninguém nem falar nem me ver obrigado à condescendência ou à fraternidade. Um egoísta. Deixem-me. Não vou amar o mundo. Estou-me nas tintas.”]

e estou mesmo.

Gostas de mim? Ainda gostas de mim? Porque é que tu gostas de mim? Não gostes de mim, faz-me lá esse favor. É que se tu gostas de mim, eu vou ter de gostar de ti, e depois tu deixas de gostar de mim, e eu não vou ser capaz de deixar de gostar de ti. Porque os sentimentos me ficam agarrados à alma. E depois, com todas estas coisas, eu fico sem coração suficiente para continuar a ter um filho, um pai de um filho, a ser escritora, letrista, guionista, e aos poucos deixo de acreditar que sei pintar, cantar ou dançar. Depois eu fico um corpo esquecido de existir. Não gostes de mim. Eu vou fazer-te mal.

Não sejas parvo. É mais que óbvio que gosto de ti, isso vê-se logo. Mas quero que saibas aquilo que eu sou, que não te enganes, é horrível uma pessoa que gosta de outra pelos motivos errados.

Gostas mesmo de mim, certo, já percebi, não me grites, que eu não gosto de gritos. Mas escuta com atenção, depois não digas que eu não te avisei.

1 comentário:

  1. O tempo faz de nós pessoas precavidas...
    Até com aquilo que deveria ser inesperadamente natural.

    Lindo!

    Leila

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