03 janeiro 2013

Renato e as estrelas

O Renato contemplava as estrelas todas as noites, fazia-o desde que das estrelas há memória. Antes do Renato ser o Renato, antes de lhe darem um nome, antes de o tocarem como fazem os humanos uns com os outros, quando o Renato era ainda e só a promessa de um Renato, já olhava vagarosamente, apaixonado, as estrelas.

Sem a consciência que os humanos têm das estrelas, ele imaginava-as perto, ainda sem braços esforçava a imagem que tinha deles para as alcançar. Achava, claro sem nenhum conhecimento efetivo acerca do assunto, que elas seriam macias e esponjosas ao toque.

Quando rodopiou cansado numa órbita galopante cheia de cor e faíscas e num repente se fez humano, teve a primeira concepção do que seria estar perto de uma estrela, encontrou várias a dançar dentro de umas bolas semi lacrimejantes, que veio mais tarde a compreender serem os olhos da pessoa que aprendeu a chamar Mãe. No seu corpo minúsculo, mas já com os braços que ele sabia serem capazes finalmente de abraçar aqueles pontos luminosos e misteriosos, procurou incessantemente essas estrelas bailarinas que sempre se viravam na sua direção quando aquilo que mais tarde seria a sua voz, soava.

Naquela noite, passados muitos anos, quando sabia o comprimento exato dos seus dedos, das suas pernas e dos braços, quando já tinha conhecimento de que outras estrelas pairavam no seu horizonte, quando tinha já a mais certa certeza de que aquelas estrelas que via dançarem nos olhos da mãe eram todas as estrelas possíveis, uma aragem soprou forte por entre as cortinas, apressou-se a cerrar as janelas e num repente, num daqueles instantes mágicos que duram eternidades no nosso coração, ergueu os olhos e lá estavam outras, distantes, que cintilavam como quem sorri de um sorriso enorme. Esticou os braços o mais que pôde, empoleirou-se no beiral da janela e estirou-se, estirou-se, estirou-se até lhe doerem insuportavelmente os músculos, mas não foi capaz nem de próximo lhes chegar.

Entristeceu-se muito, o Renato. Adormeceu com lágrimas doces no rosto, que pendiam sob o verde infinito de que lhe eram feitos os olhos. Passou anos depois dessa noite a tentar alcançar, em vão, os milhares de astros que pairavam sobre a sua cabeça todas as noites, que brilhavam de forma impossível. Sonhou muitas vezes que pegava numa e a guardava num frasco em cima da mesa de cabeceira, quando acordava ela não estava lá.

Noutra noite, quando a impossibilidade da busca já o tinha quase ganho pelo cansaço, o pequeno Renato sentou-se num banco de um jardim, Demorou-se a olhar as flores, as infinitas combinações de cores que lhe pareciam ainda mais belas sob a luz ténue e tremeluzente da lua e dos candeeiros da estrada. Uma nova aragem soprou forte, pensou sem pensar que devia correr a fechar as portadas das janelas, e esse pensamento insólito recordou-o de uma outra certa noite, à muitos anos atrás, em que a brisa lhe trouxera as estrelas brilhantes fortes no firmamento, impossíveis de alcançar. Olhou em volta e dois pontos incrivelmente luzentes, de uma claridade irreal, estavam pousados nele, calmantes. Teve medo do encantamento exacerbado que sentiu por aquelas pupilas inquietantes que o observavam com a doçura própria das coisas que queremos zelar, a ternura que sobeja do amor pelas coisas belas e infinitas.

Passaram-se muitos anos sobre essa segunda noite que definiu tantas outras que a essa se seguiram. Com o tempo, a ternura e o pulsar constante e doce com que passou a sentir o coração bater dentro do peito, o Renato deixou de procurar alcançar com o toque as estrelas impossíveis do céu, nem precisou de sonhar nunca mais que roubava uma e a guardava num frasco na sua mesa de cabeceira, Acordava dia após dia, numa repetição meiga, com as pupilas inquietantes e irrealmente luzentes da noite do banco do jardim, pousadas nele (não só nele, mas dentro dele, daquilo que ele trazia por baixo da pele, dentro do peito).

Assim me foi contada esta história, e assim passo o testemunho, para quem o quiser, para quem buscar o inalcançável, o impossível, para que saiba, tal como o pequeno Renato acabou por descobrir, que aquilo com que vamos envelhecer e que vão definir a doçura incomparável dessa velhice, não são coisas, são as pessoas, é o brilho inquietante das pessoas, das nossas, das eternas, das estrelas que escorrem das pupilas e que brilham tanto, tanto mais que aquelas, as que brilham no abstrato e nunca nos hão-de secar as lágrimas, nunca nos hão-de ouvir sorrir.

2 comentários:

  1. Lindo! eternamente Renato.

    Grande abraço

    Leila

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  2. Acabei de encontrar este texto e diz-me tanto, tanto, que não posso deixar de comentar e de te agradecer por o teres publicado.

    Cruzei-me com um Renato num desses jardins onde também eu olhava as estrelas. Subitamente, as estrelas perderam o encanto. Sempre presente, sempre discreto, passou a ser a minha única razão para ir ao jardim. Esbarrei-me com ele uma ou duas vezes, mas nunca consegui realmente falar-lhe. São pessoas que nos marcam, que não se esquecem, ainda que nunca o cheguem a saber, ainda que não consigamos entrar nas suas vidas.
    Para aquele Renato que conheci é precisamente o desfecho da tua história que desejo, porque sei que procurava algo que quero verdadeiramente que encontre e porque me é mais fácil continuar a minha história sabendo que o encontrou.

    Mais uma vez, muito obrigada pela beleza das tuas palavras.

    Isabel

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