10 junho 2011

Linhagem de Artistas

Há uma coisa, uma ideia, assim como um vírus ou um cancro, que me persegue desde que me lembro. Sabem, descendo de uma linhagem de artistas, de todas as espécies e feitios, dos que são admirados, dos que são menosprezados, dos que são crápulas e dos que merecem uma segunda opinião.
O meu pai, como tão bem me souberam explicar, embora nunca o tenha conhecido, era um pintor surrealista. Daqueles que têm o condão de colocar em tela aquilo que quase ninguém ousa sequer pensar ou querer. Diz que, em vida, tinha quadros em hotéis de renome por toda a Europa, e que volta e meia recebia daqueles prémios que dão aos artistas que são muito bons, naquela onda muito pouco interessante de lhes encherem o ego e os motivarem para uma continuação, de preferência se esta implicar que o publico alvo se vá estreitanto até se resumir a um amontoado de gente elitista com a mania que comeu um rei ao pequeno-almoço e que o carrega, qual fardo pseudo-intelectual, vida a fora.
O meu irmão tem, ainda hoje, a arte de transformar em números altamente complexos tudo aquilo em que toca. Tem daquelas mentes muito brilhantes que ninguém percebe, tal é o embróglio que para ali vai dentro, e já ninguém tenta, porque certamente enlouqueceriam. Gosto de pensar nele assim como uma pessoa que tinha mesmo que existir, que veio adicionar coisas difíceis ao mundo, mais ainda do que aquelas que ele, por si só, já acarreta, e há que observar que esta é uma arte com que dificilmente alguém compete. Tem um feitio…artístico, para não dizer ruim com’ás cobras, um coração que até se gela só de tocar, mas o ideal para pedir daqueles conselhos que podem efectivamente mudar a vida de alguém. É metódico e vai directo ao cerne da questão, não gosta de perder tempo com floreados nem, em momento algum, é capaz de se sair com aquelas bocas muito foleiras de que “o mundo é injusto” e “tal e coiso”.
A minha mãe bordava os sonhos ás crianças. Nunca lhe compreendi o engenho, sou uma coisa que acredita que é um crime pôr criancinhas no mundo, para quê submeter a mais gente esta coisa a que se chama vida? Tem a arte de pôr tudo a rir, de colorir aquilo é cinzento, de fazer com que os dias sombrios se tornem mais leves e juro que quase acredito quando ela se põe com aquela conversa de que a trovoada são as nuvens a brincarem umas com as outras e que os relâmpagos são os sorrisos da brincadeira. Tem uma paciência invejável para fazer trabalhos manuais, daqueles que implicam muita perícia, cheios de cores fluorescentes que se entrelaçam até parecerem quase saídos da mente um gajo altamente enterrado em ácidos.
A minha irmã, que é tão bonita que até dói, nasceu com o condão de amar pessoas. Pura e simplesmente por serem pessoas, por existirem, por respirarem. Despreza qualquer tipo de atentado á vida humana e está sempre em busca da próxima alma para salvar. Dedicou-se portanto a uma daquelas profissões que atenuam a dor e que implica, invariavelmente, lidar com queixumes e histórias intermináveis que as velhinhas, ou espíritos mais solitários, teimam em contar num tom monocórdico de fazer adormecer o mais hiperactivo dos miudos, qual novela de cordel. Sempre a conheci com um coração enorme, daqueles em que cabe o mundo inteiro, nunca se cansa de querer estar lá, de ser a pessoa “conta com o que for preciso” e de encontrar as soluções mais mirabolantes para qualquer tipo de problema que se lhe atravesse o caminho. Tem a arte da bondade, a minha irmã, que eu amo de morte e ás vezes detesto, porque faz brotar o pior de mim ao ser sempre tão perfeita que até há quem julgue que é invenção.
O meu tio, no entanto, é o tipo de artista que mais admiro, se é que sou capaz de admirar seja lá o que for. O meu tio tem a arte da ilusão. Não daqueles truques pindéricos que os homens se põem a concretizar na televisão, que acabam sempre com um sorriso parvo na cara e um olho a apontar pó “olhem bem para mim, sou tão brilhante que até vos ofusco!”, mas aquelas ilusões subtis, como a do amor. Sempre o conheci comprometidíssimo até aos ossos, mas sempre com mulheres diferentes. Sempre estupidamente apaixonado, como se o mundo fosse entrar em colapso nas próximas horas e ele tivesse que dar tudo o que tinha às donzelas que o iam acompanhando. Talvez por isso o tenha apanhado tantas e tantas vezes no número “queca”, que se dava fosse em que local fosse, sem que isso me tenha alguma vez, chocado minimamente. O meu tio é tão bom naquilo que faz que, embora tenha estado de casamento marcado pelo menos umas 4 vezes e tenha simplesmente optado por ir bebericar um Martini Bianco em vez de comparecer á cerimonia, as gajas continuam malucas por eles. Vejam lá bem que todas, sem excepção, além de terem sido convidadas para os casamentos vindouros, também se deram ao trabalho de ir. E o “ir” implicava uma serie de coisas, que vocês devem imaginar tão bem quanto eu, e nenhuma delas passa por ter um pingo de amor-próprio ou orgulho. Por isso, e depois de pensar mais a serio na coisa, chego á conclusão que a arte do meu tio é afinal de contas a de desfragmentar pessoas, fazê-las anularem-se até ao ponto mais vergonhoso possível e de um dia, cada uma delas nas suas pequenas individualidades, irem olhar-se no espelho e se aperceberem que já lá não estão, que se deixaram ficar a dormir á sombra de um chaparro com cara de homem, o meu tio.
Desta forma, dou comigo por várias vezes com este peso tão grande em cima dos costados, a de ter que encontrar alguma arte, algures, numa esquina qualquer, só para poder dar seguimento a esta invejável linhagem de artistas.
Já tentei de tudo, juro!
Mas eu não sou nada boa a pintar, chega a um momento em que me irrito com aquelas tintas todas e desato em esguichos epileticos contra a tela, o que resulta é um amarfanhado de texturas que fazem chorar. Cheguei a tentar convencer-me que isso também poderia ser uma forma de arte, que aqueles emaranhados malucos teriam um sentido ao final do dia, frustração. Mas depois pensei que isso nunca me iria conceder um daqueles troféus reluzentes a imitar ouro, a não ser que me matasse, mas também não tinha vontade disso, além de uma linhagem de artistas, não queria adicionar o peso de suicidas também. Portanto fui num dia de Sol á campa do meu pai e pedi-lhe muitas desculpas, mas que eu não tinha, claramente saído a ele.
Nunca tentei sequer bater a arte do meu irmão, os números detestam-me e eu a eles, e eu não acredito em relações em que ódio impera a todas as horas, e em que o retorno seria acabar os dias (para o resto da minha vida) com a cabeça a borbulhar e a doer, sem ter tempo sequer para pensar que a minha arte, era realmente uma arte.
O amor da minha mãe ás criancinhas não me é possível de atingir. Simplesmente não está mim, e o que é assim, assim será. Não que deseje algum mal aos meninos, mas gosto de os ver ao longe, de lhes imaginar o futuro. Não consigo nunca deixar de pensar que se elas trocassem duas de letra comigo, eu lhes arruinaria por certo todas as ilusões de que é feita a infância, e muito bem (diga-se de passagem), eu é que não suporto ver gente que se engana constantemente nas esquinas desta coisa que é a vida só porque um dia lhe contaram uma balela foleira ao molho que começava com “era uma vez” e terminava em “viveram felizes para sempre”.
A minha irmã está tão longe de tudo aquilo que eu considero ser, que até se me doem as vísceras só de me imaginar a amar o mundo inteiro, já viram bem o trabalho que isso dá? E além do mais tenho tolerância quase nula para conversas de cordel, e as dores chegam-me as minhas. Provavelmente aconselharia todos a combinarem um pic-nic numa linha de comboio onde passem os Alfas e que aguardassem pacientemente que a locomotiva chegasse (não se podiam era esquecer dos garrafões de tintol, que aquele ruído é irritante e se é para morrer, que ao menos se morra enfrascado!)
O mais próxima que estive foi da arte da desfragmentação de pessoas do meu tio. Gosto de levar o mundo a um extremo insane, de pôr tudo quanto é gente a questionar a minha pessoa, de os obrigar a odiarem-me , e se não querem, porque são muito boas pessoas (como a minha irmã), faço-lhes com cada uma que lhes mudo as ideias num abrir e fechar de olhos. Mas a merda é que depois fico a pensar que não tenho arte nenhuma e dá-se-me um peso na consciência terrível.
Houve uma altura em que quase consegui convencer algumas pessoas de que escrevia. De que a minha arte era essa, a de passar para o papel aquilo que a minha cabeça bipolar não conseguia condensar em gritos. Mas isso foi só um quase, um quase que quase nem chegou a ser nada. Rápido fiz questão de saltar essa cerca e tirar daí o meu cavalo, que os meus pensamentos são tão embrulhados que nem para o papel os conseguia transcrever, e não queria colocar-me na posição de escarrapachar textos quase biográficos em livros que poderiam, eventualmente, correr mais que casas do que a minha.
A ideia, o cancro, esse tal vírus que me contorce o estômago por não ter nenhuma arte, ás vezes fica mais fácil de carregar. Faço a quimioterapia da junção da linhagem de artistas e chego á conclusão de que, não podendo ou querendo ter nem um bocado de nenhuma das artes atrás mencionadas, nunca recairá sobre mim a responsabilidade de ter que seguir com a linhagem para as novas gerações, pelo simples facto de não acreditar em novas gerações. Então, nestes momentos, enrosco-me muito bem enroscadinha na cadeira da escrivaninha e desejo com muita força ser uma coisa que não sou, gostar das pessoas e do mundo e conseguir pespegar num raio de uma folha de papel (podia bem ser daqueles higiénicos de limpar o cu) tudo aquilo que a minha linhagem de artistas não conseguiram condensar num grito, aquele que tenho ás voltas dentro de tudo isto que tenho cá dentro e que não sou capaz, nem com engenho ou arte, transpor para uma folha em branco.

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