18 maio 2012

"Não desfiz a mala" de Pedro Paixão

"Não desfiz a mala. Não vou desfazer a mala. Tiro de dentro dela só o que preciso (...). Desfazer a mala e arrumar tudo nas três gavetas que vejo parece-me demasiado definitivo. Espero que algo aconteça e saiba para o que vim. Depois parto. Se puder. Se não for tarde demais. Se o que inteiramente ignoro permitir que parta. Se não, não parto.
O lugar de onde vim era-me insuportável. Aconteciam demasiadas coisas. Coisas que se atropelavam. Coisas sem sentido algum, abomináveis. A corrupção instalada. O Estado corrompido. Crianças violadas. Tudo isto no meio de um riso histérico e um desespero absoluto. O lugar de onde vim já tinha perdido, ou pior, estava na iminência de perder tudo o que era seu, um destino qualquer. Só restavam as casas, as ruas, uma paisagem em ruínas. Comecei a perguntar-me se os seres que tinham cara e falavam seriam humanos. Era dificil encontrar um resto, um rasto de humanidade.
Senti o terror de já ser como os demais: uma cara e uma boca desumanas. Só restavam as pedras, umas sobre as outras. E por baixo dos gritos, da tagarelice infinita, um silêncio de morte.
Comecei a chorar de manhã, à tarde e à noite. A chorar sem saber porque chorava. A chorar só. Comecei a tomar demasiados comprimidos, a beber cervejas a toda a hora, a fumar dois maços de cigarros. Não deixava de ser insuportável. Só quando dormia era suportável. Tive de fazer a mala com as poucas forças que me restavam e fugir dali num derradeiro acesso de lucidez ou de inconsciente coragem.
O que será feito de mim? O que será feito do mundo? O que deveria ser feito? Como deverá ser feito? E para que fim?
Acordei. Tomei um duche rápido. Tomei o pequeno-almoço e a minha alma sinto-a levemente a estremecer."

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