26 outubro 2012

O Gaspar era um excêntrico

O Gaspar era um excêntrico. Eu tinha muito medo dele, não pela excentricidade, mas por aquilo que ela me fazia. Explico: eu tinha muito medo do Gaspar porque sempre que o Gaspar regressava eu me apaixonava por ele. Era coisa para durar uma semana, um mês no máximo. Depois levava-o ao aeroporto, caminhava distraidamente junto à mochila encaixada nas costas dele, e ele ia embora. Ficava longe sempre muito tempo. Os primeiros dias sem ele eram tortuosos, custava-me a habituar-me a mim sem ele, que era uma coisa totalmente distinta de mim com ele.

Também nunca gostei muito do que eu era com ele, mas pior era sem ele (pelo menos nos primeiros dias). Bebíamos sempre demais, largava-mos gargalhadas muito altas, estávamos sempre ou a correr ou então tudo se passava em câmara quase lenta. Nada era certo nem previsível, não era sequer possível fazer planos com o Gaspar, a coisa que ele mais detestava eram planos, reservas, marcações prévias. Quando queríamos ir ao teatro era na hora, porque o cartaz era bonito, porque era barato, porque ainda existiam lugares vagos.

Houve uma dia, disso lembro-me nitidamente em que ele me disse

- E se eu ficar?

- O quê?

- E se eu ficar?

- Ficares onde?

- Aqui. Contigo.

- Como assim? Ficas sempre aqui comigo…

- Não. Não estás a perceber. Se eu ficar mesmo, se não voltar a ir embora. Que achas?

A isto respondi-lhe com um estalo que ecoou durante um tempo que me pareceu imenso. Chorei muito e perguntei-lhe se quem saia imediatamente era eu ou ele, mas que alguém tinha que sair mais que não fosse um par de horas. Saí eu. Contava que quando regressasse ele já lá não estivesse mas estava, precisamente na mesma posição em que o tinha deixado.

- Olha lá, que merda foi aquela?! Estás louca?!

Abracei-o com força e disse-lhe baixinho:

- Nem penses em ficar. Se ficares desapareces, deixas de ser tu, e eu quero-te a ti, assim, vadio. É disso que é feito o meu amor por ti. Se ficares, garanto-te, é a nossa sentença de morte.

No dia seguinte ele voltou a partir. Acompanhei-o ao aeroporto, caminhei distraidamente junto à mochila encaixada nas suas costas e regressei a casa cheia dele, do cheiro dele e da certeza de que a semana seguinte ia ser excruciante. E foi. E é.

O avião do Gaspar despenhou-se ainda em solo português, ligaram para mim porque era o único numero de contacto que ele tinha. Tive de ir reconhecer o corpo, ou aquilo que eles chamaram de corpo, que na realidade era um amontoado de carne e sangue e ossos absolutamente irreconhecíveis. No dia a seguir ao funeral sonhei com ele, e em todos os dias seguintes. Ontem, passados quatro meses do acidente, ele falou comigo no sono

- Afinal sempre fiquei. Vês?! E não desapareci, não mudei, assinei a minha sentença de morte sem assinar a nossa. Afinal sempre fiquei.

e piscou-me o olho no exacto momento em que acordei. Passei o resto da madrugada a rir-me, e a chorar a rir, ou a rir a chorar, ou tudo isso misturado.

- Gaspar, seu desgraçado, afinal sempre ficaste.

O Gaspar era um excêntrico, e eu tinha muito medo dele: fazia-me feliz como é já impossível ser-se feliz. Nunca fizemos planos nenhuns, nem o nosso fim foi planeado. Aliás, o nosso fim não aconteceu, aconteceu-nos, e essa foi a única forma de fazermos o nosso amor valer a pena. O termos sido condenados, no final de contas a ficar, porque na realidade para que outro sitio poderíamos ter ido? Nenhum lugar no mundo seria seguro para o nosso amor vadio. Só a morte Gaspar. Só a morte.

1 comentário:

  1. "Nem penses em ficar. Se ficares desapareces." (não é suposto ler isto. É suposto lermos clichés)

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