11 janeiro 2012

Começar a contar-nos ou Quedas no empedrado

Mais um frasco partido no chão.
Era assim que pretendia começar a contar-nos. Há que começar sempre por algum lado e como em tudo, nunca se sabe exactamente e com toda  certeza como irá, eventualmente, terminar.
Eu acreditava em fadas e na vida eterna e além disso, acreditava que se o dissesse com veemencia suficiente isso seria efectivamente verdade.
Tu acreditavas nas viagens sem rumo ou planeamento, e neste, como em tantos outros pontos, sempre estivemos de acordo.
Quando se viaja, viaja-se em busca de algo que só sabemos descodificar depois de regressarmos ao ponto de partida e surpreendemo-nos ao compreender que, muitas das vezes, é exactamente o retorno que nos fazia falta. Sentir o retorno como uma finalidade.
Saber que não se pertence de facto a sitio nem coisa nenhuma mas, ao mesmo tempo, termos a mais pura certeza de que não querendo ou podendo continuar, podemos sempre ter um sitio para onde possamos dizer que vamos regressar.
Voltar, no seu sentido mais lato, nunca é fácil. Tenhamos partido por anos, meses ou horas, o "voltar" implica quase sempre sentir que estamos, inequivocamente, acorrentados a alguma coisa
[um móvel, uma panela, uma estante ou uma pessoa].
Exige de nós que nos armemos em malabaristas de praça e retomemos uma série de hábitos aos quais nem sempre é simples retornar
[rodar a chave na fechadura que empana, colocar a carteira na cómoda da entrada, ligar o televisor só para que nos sintamos acompanhados, aquecer a água para bebermos o chá que sabemos ir beber sozinhos].
E é por isso que no mais das vezes á fácil, demasiado fácil partir. Usar o "partir" como um espairecer, um rosto novo que nos dá os bons dias, uma porta diferente com veios macios de madeira tratada, ruelas mal iluminadas cheias da mistica que julgávamos apenas sonhada.
Mas partir só é bom quando, ainda que não regressemos, sabemos ter algo para o qual retornar.
Não deixa de ser um equivoco esse de querer viajar sem rumo. Só viaja sem rumo quem não tem quase nada a perder, quem não tem na base
[um móvel, uma panela, uma estante ou uma pessoa].
Ou quando, tendo tudo isto, nenhum dos acima mencionados merecem de nós o nosso tempo, carinho ou sacrificio.
Quem viaja sem rumo tem o coração a transbordar, tem os pulmões cheios de uma matéria invisivel com se tecem os desejos, tem nas mãos os calos dolorosos daquilo que construiu sem brio, sem extase ou gozo.
Viajam sem rumo os que amam e querem demais. Os que caem nas esquinas ou na calçada por não terem tempo para olhar o chão, só o infinito dentro da cabeça
[fadistas de bares escuros e escondidos, ruas desertas de frio nocturno, desenhos piturescos de revolta pessoal, acordes de musica que chegam do outro lado do mundo].
Quem viaja sem rumo há-de fazê-lo até que lhe doam os pés, até que lhe falte a voz, até que deixe de doer dentro.
Mais um frasco partido no chão.
Era assim que pretendia começar a contar-nos.
Mas por enquanto ainda não há nenhum frasco partido em parte nenhuma, por isso a minha mão preferiu guiar-me por viagens sem rumo.
Agora, depois de tudo o que foi dito, talvez esta seja, afinal de contas, a melhor forma de começar a contar-nos.

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