02 janeiro 2012

Memória Descritiva (Cap I, parte I)

Quero que o dia da minha morte passe depressa na tua memória.
            Quando ficamos velhos começamos a sentir-nos a mais, tal e qual como na tua juventude, quando os amigos não partilham todos os segredos, quando te deixam sentado no banco como suplente ou quando são sussurradas coisas à tua frente sem que saibas o seu conteúdo.
            Do nosso afastamento, juro, sei muito pouco. Compreendi que tenhas decidido seguir esse caminho porque também eu já fui assim, rebelde e sem rédeas, mas confesso que julguei que acabasses por regressar. È claro que o teu pai não soube lidar com as coisas da melhor forma, sempre a pedir que não te mencionássemos, a afirmar que não te telefonaria e que eras crescido o suficiente para suportares o peso das consequências dos teus actos.
            Claro que não eras, mas lembro-me de te ter invejado a audácia, as asas a crescerem-te nas costas.
            Ias passando cá por casa muito poucas vezes, sempre quando o teu pai não estava e sempre de fugida. Davas um beijo rápido à tua avó e o teu aperto de mão, senti-o tornar-se mais forte mas mais desprendido à medida que os anos passavam.
            Depois julguei que tu e o teu pai tinham feito as pazes, passaram a aparecer algumas vezes juntos, que é como quem diz a partilharem o mesmo espaço físico. Ninguém fez perguntas, se bem que a tua avó me incumbia da tarefa de tirar nabos da púcara, trabalho para o qual, como bem sabes, nunca fui talhado.
            A olhar-te agora, depois de todas as coisas que foram ficando por dizer, recordo-me dos dias em que me comecei a aperceber que algo de muito errado se passava contigo.
            Estávamos de férias em Porto Covo, devias ter cerca de 17 anos e enquanto os teus irmãos corriam para jogar à bola na areia, tu deixavas-te ficar debaixo do chapéu-de-sol connosco, os velhotes. Noutros dias ias sozinho para a esplanada e ficavas lá muito tempo com o olhar preso no mar.
            Comentei-o com a tua avó que logo desvalorizou a minha preocupação (compreendo agora que os teus sentimentos também), achava que estavas na idade do armário e se eu não me lembrava de ter tido a tua idade. Não me descansou, confesso.
            À noite ouvia os teus passos no corredor até à cozinha. O frigorífico a abrir e a fechar e o som do isqueiro a acender os cigarros que até então nem sequer sabia que fumavas.
            Andavas triste. Saias à noite com os teus irmãos e o vosso grupo de amigos, mas no dia seguinte não te via entusiasmado como eles, a contarem entre risinhos abafados as aventuras da noite passada.
            Adivinhava-te o cheiro a álcool no hálito quando chegavam às tantas da madrugada e eu sempre sem conseguir dormir, ralado de preocupação. A tua avó, essa, dormia que nem uma pedra, dizia que vocês já sabiam o que faziam e que para ralações dessas já lhe tinham chegado as dos filhos, quanto mais chegar a velha e tê-las com os netos.
            As férias terminaram rápido e todos voltámos à nossa rotina.
            Como me arrependo de não ter prestado mais atenção aos primeiros e pequenos sinais. Como me arrependo de te ter deixado ir sem te dar um abraço à homem, daqueles em que não se diz nada, mas que deixa implícito que sabemos que algo de errado se está a passar.
            Quem sabe terias confiado mais em mim, no teu velho avô, e me terias contado o que te atormentava. Sem pressas, julgamentos, ou sermões moralistas, como sei que encontravas em tua casa, sempre sem tempo ou espaço para conversar ou partilhar momentos.
            “È a vida, não podemos deixar que ela nos apanhe, senão é que vai tudo pelo cano abaixo”, dizia o meu pai.
            Sabes, também tive uma infância, uma adolescência e juventude, não fui sempre assim velho, como agora (por muito que te custe crer). Também me fazia confusão, como te faz a ti, que as pessoas não tivessem tempo para parar e escutar, e que tínhamos que correr para a vida não nos apanhar, mas depois veio o emprego e a tua avó (alguma vez te contei a nossa história?), o teu pai e os teus tios, as contas para pagar, a vida, eventualmente, a apanhar-me.
            Sim, deixei-me apanhar por ela, mas não quero que julgues que foi o amor à tua avó que o provocou (sei como a ideia do amor te incomoda, sei-o só agora, espero que não seja ainda demasiado tarde), antes pelo contrário.
            A tua avó trabalhava numa fábrica de tecidos em Estremoz, passava todos os dias à minha porta com as amigas a caminho do trabalho e o riso dela ecoava pela rua até me encontrar. Depois deixou de ser o meu despertador, obrigava-me a acordar mais cedo e deixava-me ficar à espera de a ouvir.
            Algum tempo depois fazia todos os possíveis para sair de casa exactamente no momento em que ela lá passasse e seguia-a de longe. Ficava uma porção do caminho a admirar-lhe o andar, a ver a saia dançar-lhe na cintura e os cabelos a baloiçar nas costas, e a outra porção a maquinar artimanhas para falar com ela. Eram as melhores e as piores partes do meu dia, vê-la chegar e depois, 2 ruas e 3 cruzamentos depois, vê-la afastar-se no empedrado geométrico da estrada.
            Depois de meses desta perseguição escondida, vieram as festas da Nossa Sra. do Mileu, deves lembrar-te que em miúdo levava-te sempre lá, adoravas os carrosséis e da minha parte, adorava ficar naquilo a noite toda até o senhor nos obrigar a ir embora, e tu, contrariado, a obrigares-me a prometer que lá voltaríamos no dia seguinte.
            De qualquer modo encontrei a tua avó na barraquinha das rifas e gastei quase metade do meu ordenado a comprar aqueles papelinhos às cores, tão bem enrolados, cheios de segredos dentro. Levei para casa um conjunto de chávenas e uma piaçaba e da tua avó, nem um olhar.

(TO BE CONTINUED...)

2 comentários:

  1. Muito Obrigada, Behem0t*
    Para breve a continuação, espero que continue a acompanhar e a apreciar, a literatura precisa de quem a aprecie*

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